*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 67935 *** ACABA DE SER PUBLICADO O Plano Pangermanista desmascarado A temivel cilada Berlineza da "=Partida Nulla=" POR _André Chéradame_ Um vol. in-16 com 31 mappas no texto, brochado, 4$000 Á venda na LIVRARIA GARNIER _109, Rua do Ouvidor--Rio de Janeiro_ _Todos os direitos reservados_ MACHADO DE ASSIS DA ACADEMIA BRASILEIRA Reliquias de Casa Velha H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR 71, RUA DO OUVIDOR, 71 RIO DE JANEIRO 6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6 PARIS 1906 INDICE ADVERTENCIA. I A CAROLINA. III Pae contra mãe. 1 Maria Cora. 19 Marcha funebre. 47 Um capitão de voluntarios. 59 Suje-se gordo! 79 Umas ferias. 87 Evolução. 99 Pylades e Orestes. 109 Anecdota do cabriolet. 125 Paginas criticas e commemorativas. 137 Não consultes medico. 167 Licção de botanica. 211 ADVERTENCIA _Uma casa tem muita vez as suas reliquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Suppõe que o dono pense em as arejar e expôr para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, póde extrair uma duzia dellas que mereçam sair cá fóra._ _Chama-lhe á minha vida uma casa, dá o nome de reliquias aos ineditos e impressos que aqui vão, idéas, historias, críticas, dialogos, e verás explicados o livro e o titulo. Possivelmente não terão a mesma supposta fortuna daquella duzia de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fóra. Depende da tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha._ MACHADO DE ASSIS. A Carolina Querida, ao pé do leito derradeiro Em que descanças dessa longa vida, Aqui venho e virei, pobre querida, Trazer-te o coração do companheiro. Pulsa-lhe aquelle affecto verdadeiro Que, a despeito de toda a humana lida, Fez a nossa existencia appetecida E n'um recanto poz um mundo inteiro. Trago-te flores,--restos arrancados Da terra que nos viu passar unidos E ora mortos nos deixa e separados. Que eu, se tenho nos olhos mal feridos Pensamentos de vida formulados, São pensamentos idos e vividos. Pae contra Mãe A escravidão levou comsigo officios e apparelhos, como terá succedido a outras instituições sociaes. Não cito alguns apparelhos senão por se ligarem a certo officio. Um delles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia tambem a mascara de folha de Flandres. A mascara fazia perder o vicio da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a bocca. Tinha só tres buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atraz da cabeça por um cadeado. Com o vicio de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vintens do senhor que elles tiravam com que matar a sêde, e ahi ficavam dous peccados extinctos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal mascara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, á venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de mascaras. O ferro ao pescoço era applicado aos escravos fujões. Imaginae uma colleira grossa, com a haste grossa tambem, á direita ou á esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atraz com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que signal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. Ha meio seculo, os escravos fugiam com frequencia. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Succedia occasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas reprehendida; havia alguem de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a acção, porque dinheiro tambem dóe. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Vallongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raros, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhal-o fóra, quitandando. Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lh'o levasse. Punha annuncios nas folhas publicas, com os signaes do fugido, o nome, a roupa, o defeito physico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: «gratificar-se-ha generosamente,»--ou «receberá uma boa gratificação.» Muita vez o annuncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao hombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse. Ora, pegar escravos fugidos era um officio do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implicita das acções reivindicadoras. Ninguem se mettia em tal officio por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir tambem, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem á desordem. Candido Neves,--em familia, Candinho,--é a pessoa a quem se liga a historia de uma fuga, cedeu á pobreza, quando adquiriu o officio de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem officio, carecia de estabilidade; é o que elle chamava caiporismo. Começou por querer aprender typographia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compôr bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que elle disse a si mesmo. O commercio chamou-lhe a attenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de attender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartorio, continuo de uma repartição annexa ao ministerio do imperio, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos. Quando veiu a paixão da moça Clara, não tinha elle mais que dividas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de officio. Depois de varias tentativas para obter emprego, resolveu adoptar o officio do primo, de que aliás já tomára algumas licções. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos communs para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito. Contava trinta annos, Clara vinte e dous. Ella era orphã, morava com uma tia, Monica, e cosia com ella. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam ás tardes, olhavam muito para ella, ella para elles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ella notava é que nenhum d'elles lhe deixava saudades nem lhe accendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar á roda da isca, miral-a, cheiral-a, deixal-a e ir a outras. O amor traz sobrescriptos. Quando a moça viu Candido Neves, sentiu que era este o possivel marido, o marido verdadeiro e unico. O encontro deu-se em um baile; tal foi--para lembrar o primeiro officio do namorado,--tal foi a pagina inicial daquelle livro, que tinha de sair mal composto e peior brochado. O casamento fez-se onze mezes depois, e foi a mais bella festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredal-a do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas. --Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. --Não, defunto não; mas é que... Não diziam o que era. Tia Monica, depois do casamento, na casa pobre onde elles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possiveis. Elles queriam um, um só, embora viesse aggravar a necessidade. --Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia á sobrinha. --Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Monica devia ter-lhes feito a advertencia, ou ameaça, quando elle lhe foi pedir a mão da moça; mas tambem ella era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. A alegria era commum aos tres. O casal ria a proposito de tudo. Os mesmos nomes eram objecto de trocados, Clara, Neves, Candido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ella cosia agora mais, elle saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo. Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquelle desejo especifico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu signal de si a creança; varão ou femea, era o fructo abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Monica ficou desorientada, Candido e Clara riram dos seus sustos. --Deus nos ha de ajudar, titia, insistia a futura mãe. A noticia correu de visinha a visinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da creança. Á força de pensar nella, vivia já com ella, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervallos longos. Tia Monica ajudava, é certo, ainda que de má vontade. --Vocês verão a triste vida, suspirava ella. --Mas as outras creanças não nascem tambem? perguntou Clara. --Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco... --Certa como? --Certa, um emprego, um officio, uma occupação, mas em que é que o pae dessa infeliz creatura que ahi vem, gasta o tempo? Candido Neves, logo que soube daquella advertencia, foi ter com a tia, não aspero, mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixára de comer. --A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar commigo. Nunca deixámos de ter o nosso bacalhau... --Bem sei, mas somos tres. --Seremos quatro. --Não é a mesma cousa. --Que quer então que eu faça, além do que faço? --Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o typographo que casou sabbado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a occupação que escolheu, é vaga. Você passa semanas sem vintem. --Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que commigo não brinca; quasi nenhum resiste, muitos entregam-se logo. Tinha gloria nisto, falava da esperança como de capital seguro. Dahi a pouco ria, e fazia rir á tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no baptisado. Candido Neves perdera já o officio de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou peiores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciencia, coragem e um pedaço de corda. Candido Neves lia os annuncios, copiava-os, mettia-os no bolso e saía ás pesquizas. Tinha boa memoria. Fixados os signaes e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achal-o, segural-o, amarral-o e leval-o. A força era muita, a agilidade tambem. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atraz do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava logar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente elle os vencia sem o menor arranhão. Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como d'antes, metter-se nas mãos de Candido Neves. Havia mãos novas e habeis. Como o negocio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e n'uma corda, foi aos jornaes, copiou annuncios e deitou-se á caçada. No proprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dividas de Candido Neves começaram de subir, sem aquelles pagamentos promptos ou quasi promptos dos primeiros tempos. A vida fez-se difficil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos alugueis. Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fóra. Tia Monica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando elle chegava á tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintem. Jantava e saía outra vez, á cata de algum fugido. Já lhe succedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande somma de murros que lhe deram os parentes do homem. --É o que lhe faltava! exclamou tia Monica, ao vel-o entrar, e depois de ouvir narrar o equivoco e suas consequencias. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego. Candido quizera effectivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de officio; seria um modo de mudar de pelle ou de pessoa. O peior é que não achava á mão negocio que aprendesse depressa. A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado á mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mez, mez de angustias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso tambem. Melhor é dizer somente os seus effeitos. Não podiam ser mais amargos. --Não, tia Monica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pae ouvil-o. Isso nunca! Foi na ultima semana do derradeiro mez que a tia Monica deu ao casal o conselho de levar a creança que nascesse á Roda dos engeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens paes que espreitavam a creança, para beijal-a, guardal-a, vel-a rir, crescer, engordar, pular... Engeitar quê? engeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quasi a se desfazer inteiramente. Clara interveiu: --Titia não fala por mal, Candinho. --Por mal? replicou tia Monica. Por mal ou por bem, seja o que fôr, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não apparecer algum dinheiro, como é que a familia ha de augmentar? E depois, ha tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguem, ninguem morre á tôa, emquanto que aqui é certo morrer, se viver á mingua. Enfim... Tia Monica terminou a phrase com um gesto de hombros, deu as costas e foi metter-se na alcova. Tinha já insinuado aquella solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,--crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o animo; Candido Neves fez uma careta, e chamou maluca á tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguem que batia á porta da rua. --Quem é? perguntou o marido. --Sou eu. Era o dono da casa, credor de tres mezes de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quiz que elle entrasse. --Não é preciso... --Faça favor. O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos á mobilia para ver se daria algo á penhora; achou que pouco. Vinha receber os alugueis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pol-o-hia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vel-o, ninguem diria que era proprietario; mas a palavra suppria o que faltava ao gesto, e o pobre Candido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e supplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais. --Cinco dias ou rua! repetiu, mettendo a mão no ferrolho da porta e saindo. Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum emprestimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos annuncios. Achou varios, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietario, não alcançando mais que a ordem de mudança. A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Monica teve arte de alcançar aposento para os tres em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometteu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pateo. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Candido Neves, no desespero da crise, começasse por engeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em summa. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fal-os-hia espantar com a noticia do obsequio e iriam dormir melhor do que cuidassem. Assim succedeu. Postos fóra da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a creança. A alegria do pae foi enorme, e a tristeza tambem. Tia Monica insistiu em dar a creança á Roda. «Se você não a quer levar, deixe isso commigo; eu vou á rua dos Barbonos.» Candido Neves pediu que não, que esperasse, que elle mesmo a levaria. Notae que era um menino, e que ambos os paes desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse á noite, assentou o pae leval-o á Roda na noite seguinte. Naquella reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a somma escripta e escassa. Uma, porém, subia a cem mil réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Candido Neves andára a pesquizal-a sem melhor fortuna, e abrira mão do negocio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade della animaram Candido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela rua e largo da Carioca, rua do Parto e da Ajuda, onde ella parecia andar, segundo o annuncio. Não a achou; apenas um pharmaceutico da rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, tres dias antes, á pessoa que tinha os signaes indicados. Candido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortezmente a noticia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata. Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Monica arranjára de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado á Roda. O pae, não obstante o accordo feito, mal poude esconder a dôr do espectaculo. Não quiz comer o que Tia Monica lhe guardára; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o proprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Monica pintára-lhe a criação do menino; seria maior miseria, podendo succeder que o filho achasse a morte sem recurso. Candido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu á mulher que désse ao filho o resto do leite que elle beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pae pegou delle, e saiu na direcção da rua dos Barbonos. Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com elle, é certo; não menos certo é que o agazalhava muito, que o beijava, que lhe cobria o rosto para preserval-o do sereno. Ao entrar na rua da Guarda Velha, Candido Neves começou a afrouxar o passo. --Hei de entregal-o o mais tarde que puder, murmurou elle. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabal-a; foi então que lhe occorreu entrar por um dos beccos que ligavam aquella á rua da Ajuda. Chegou ao fim do becco e, indo a dobrar á direita, na direcção do largo da Ajuda, viu do lado opposto, um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a commoção de Candido Neves por não podel-o fazer com a intensidade real. Um adjectivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu elle tambem; a poucos passos estava a pharmacia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o pharmaceutico, pediu-lhe a fineza de guardar a creança por um instante; viria buscal-a sem falta. --Mas... Candido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rapido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarme. No extremo da rua, quando ella ia a descer a de S. José, Candido Neves approximou-se della. Era a mesma, era a mulata fujona. --Arminda! bradou, conforme a nomeava o annuncio. Arminda voltou-se sem cuidar malicia. Foi só quando elle, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ella comprehendeu e quiz fugir. Era já impossivel. Candido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quiz gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguem viria libertal-a, ao contrario. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus. --Estou gravida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor delle que me solte; eu serei sua escrava, vou servil-o pelo tempo que quizer. Me solte, meu senhor moço! --Siga! repetiu Candido Neves. --Me solte! --Não quero demoras; siga! Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava á porta de uma loja, comprehendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia allegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,-- cousa que, no estado em que ella estava, seria peior de sentir. Com certeza, elle lhe mandaria dar açoutes. --Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Candido Neves. Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficára na pharmacia, á espera delle. Tambem é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela rua dos Ourives, em direcção á da Alfandega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava poz os pés á parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apezar de ser a casa proxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, emfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda alli ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor. --Aqui está a fujona, disse Candido Neves. --É ella mesma. --Meu senhor! --Anda, entra... Arminda caiu no corredor. Alli mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil reis de gratificação. Candido Neves guardou as duas notas de cincoenta mil reis, emquanto o senhor novamente dizia á escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dôr, e após algum tempo de luta a escrava abortou. O fructo de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Candido Neves viu todo esse espectaculo. Não sabia que horas eram. Quaesquer que fossem, urgia correr á rua da Ajuda, e foi o que elle fez sem querer conhecer as consequencias do desastre. Quando lá chegou, viu o pharmaceutico sósinho, sem o filho que lhe entregára. Quiz esganal-o. Felizmente, o pharmaceutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a familia, e ambos entraram. O pae recebeu o filho com a mesma furia com que pegára a escrava fujona de ha pouco, furia diversa, naturalmente, furia de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu ás carreiras, não para a Roda dos engeitados, mas para a casa de emprestimo, com o filho e os cem mil reis de gratificação. Tia Monica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil reis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Candido Neves, beijando o filho, entre lagrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. --Nem todas as creanças vingam, bateu-lhe o coração. Maria Cora I Uma noite, voltando para casa, trazia tanto somno que não dei corda ao relogio. Póde ser tambem que a vista de uma senhora que encontrei em casa do commendador T. contribuisse para aquelle esquecimento; mas estas duas razões destróem-se. Cogitação tira o somno e o somno impede a cogitação; só uma das causas devia ser verdadeira. Ponhamos que nenhuma, e fiquemos no principal, que é o relogio parado, de manhã, quando me levantei, ouvindo dez horas no relogio da casa. Morava então (1893) em uma casa de pensão no Cattete. Já por esse tempo este genero de residencia florescia no Rio de Janeiro. Aquella era pequena e tranquilla. Os quatrocentos contos de réis permittiam-me casa exclusiva e propria; mas, em primeiro logar, já eu alli residia quando os adquri, por jogo de praça; em segundo logar, era um solteirão de quarenta annos, tão affeito á vida de hospedaria que me seria impossivel morar só. Casar não era menos impossivel. Não é que me faltassem noivas. Desde os fins de 1891 mais de uma dama,--e não das menos bellas,--olhou para mim com olhos brandos e amigos. Uma das filhas do commendador tratava-me com particular attenção. A nenhuma dei corda; o celibato era a minha alma, a minha vocação, o meu costume, a minha unica ventura. Amaria de empreitada e por desfastio. Uma ou duas aventuras por anno bastavam a um coração meio inclinado ao occaso e á noite. Talvez por isso dei alguma attenção á senhora que vi em casa do commendador, na vespera. Era uma creatura morena, robusta, vinte e oito a trinta annos, vestida de escuro; entrou ás dez horas, acompanhada de uma tia velha. A recepção que lhe fizeram, foi mais cerimoniosa que as outras; era a primeira vez que alli ia. Eu era a terceira. Perguntei se era viuva. --Não; é casada. --Com quem? --Com um estancieiro do Rio Grande. --Chama-se? --Elle? Fonseca, ella Maria Cora. --O marido não veiu com ella? --Está no Rio Grande. Não soube mais nada; mas a figura da dama interessou-me pelas graças physicas, que eram o opposto do que poderiam sonhar poetas romanticos e artistas seraphicos. Conversei com ella alguns minutos, sobre cousas indifferentes,--mas sufficientes para escutar-lhe a voz, que era musical, e saber que tinha opiniões republicanas. Vexou-me confessar que não as professava de especie alguma; declarei-me vagamente pelo futuro do paiz. Quando ella falava, tinha um modo de humedecer os beiços, não sei se casual, mas gracioso e picante. Creio que, vistas assim ao pé, as feições não eram tão correctas como pareciam a distancia, mas eram mais suas, mais originaes. II De manhã tinha o relogio parado. Chegando á cidade, desci a rua do Ouvidor, até á da Quitanda, e indo a voltar á direita, para ir ao escriptorio do meu advogado, lembrou-me ver que horas eram. Não me acudiu que o relogio estava parado. --Que massada! exclamei. Felizmente, naquella mesma rua da Quitanda, á esquerda, entre as do Ouvidor e Rosario, era a officina onde eu comprára o relogio, e a cuja pendula usava acertal-o. Em vez de ir para um lado, fui para outro. Era apenas meia hora; dei corda ao relogio, acertei-o, troquei duas palavras com o official que estava ao balcão, e indo a sair, vi á porta de uma loja de novidades que ficava defronte, nem mais nem menos que a senhora de escuro que encontrára em casa do commendador. Comprimentei-a, ella correspondeu depois de alguma hesitação, como se me não houvesse reconhecido logo, e depois seguiu pela rua da Quitanda fóra, ainda para o lado esquerdo. Como tivesse algum tempo ante mim (pouco menos de trinta minutos), dei-me a andar atraz de Maria Cora. Não digo que uma força violenta me levasse já, mas não posso esconder que cedia a qualquer impulso de curiosidade e desejo; era tambem um resto da juventude passada. Na rua, andando, vestida de escuro, como na vespera, Maria Cora pareceu-me ainda melhor. Pisava forte, não apressada nem lenta, o bastante para deixar ver e admirar as bellas fórmas, mui mais correctas que as linhas do rosto. Subiu a rua do Hospicio, até uma officina de ocularista, onde entrou e ficou dez minutos ou mais. Deixei-me estar a distancia, fitando a porta disfarçadamente. Depois saiu, arrepiou caminho, e dobrou a rua dos Ourives, até á do Rosario, por onde subiu até ao largo da Sé; dahi passou ao de S. Francisco de Paula. Todas essas reminiscencias parecerão escusadas, senão aborreciveis; a mim dão-me uma sensação intensa e particular, são os primeiros passos de uma carreira penosa e longa. Demais, vereis por aqui que ella evitava subir a rua do Ouvidor, que todos e todas buscariam áquella ou a outra hora para ir ao largo de S. Francisco de Paula. Foi atravessando o largo, na direcção da Escola Polytechnica, mas a meio caminho veiu ter com ella um carro que estava parado defronte da Escola; metteu-se nelle, e o carro partiu. A vida tem suas encruzilhadas, como outros caminhos da terra. Naquelle momento achei-me deante de uma assaz complicada, mas não tive tempo de escolher direcção,--nem tempo nem liberdade. Ainda agora não sei como é que me vi dentro de um tilbury; é certo que me vi nelle, dizendo ao cocheiro que fosse atraz do carro. Maria Cora morava no Engenho Velho; era uma boa casa, solida, posto que antiga, dentro de uma chacara. Vi que morava alli, porque a tia estava a uma das janellas. Demais, saindo do carro, Maria Cora disse ao cocheiro (o meu tilbury ia passando adeante) que naquella semana não sairia mais, e que apparecesse segunda-feira ao meio-dia. Em seguida, entrou pela chacara, como dona della, e parou a falar ao feitor, que lhe explicava alguma cousa com o gesto. Voltei depois que ella entrou em casa, e só muito abaixo é que me lembrou de ver as horas; era quasi uma e meia. Vim a trote largo até á rua da Quitanda, onde me apeei á porta do advogado. --Pensei que não vinha, disse-me elle. --Desculpe, doutor, encontrei um amigo que me deu uma massada. Não era a primeira vez que mentia na minha vida, nem seria a ultima. III Fiz-me encontradiço com Maria Cora, na casa do commendador, primeiro, e depois em outras. Maria Cora não vivia absolutamente reclusa, dava alguns passeios e fazia visitas. Tambem recebia, mas sem dia certo, uma ou outra vez, e apenas cinco a seis pessoas da intimidade. O sentimento geral é que era pessoa de fortes sentimentos e austeros costumes. Accrescentae a isto o espirito, um espirito agudo, brilhante e viril. Capaz de resistencias e fadigas, não menos que de violencias e combates, era feita, como dizia um poeta que lá ia á casa della, «de um pedaço de pampa e outro de pampeiro.» A imagem era um verso e rima, mas a mim só me ficou a idéa e o principal das palavras. Maria Cora gostava de ouvir definir-se assim, posto não andasse mostrando aquellas forças a cada passo, nem contando as suas memorias da adolescencia. A tia é que contava algumas, com amor, para concluir que lhe saia a ella, que tambem fôra assim na mocidade. A justiça pede que se diga que, ainda agora, apezar de doente, a tia era pessoa de muita vida e robustez. Com pouco, apaixonei-me pela sobrinha. Não me pesa confessal-o, pois foi a occasião da unica pagina da minha vida que merece attenção particular. Vou narral-a brevemente; não conto novella nem direi mentiras. Gostei de Maria Cora. Não lhe confiei logo o que sentia, mas é provavel que ella o percebesse ou adivinhasse, como todas as mulheres. Se a descoberta ou adivinhação foi anterior á minha ida á casa do Engenho Velho, nem assim deveis censural-a por me haver convidado a ir alli uma noite. Podia ser-lhe então indifferente a minha disposição moral; podia tambem gostar de se sentir querida, sem a menor idéa de retribuição. A verdade é que fui essa noite e tornei outras; a tia gostava de mim e dos meus modos. O poeta que lá ia, tagarella e tonto, disse uma vez que estava afinando a lyra para o casamento da tia commigo. A tia riu-se; eu, que queria as boas graças della, não podia deixar de rir tambem, e o caso foi materia de conversação por uma semana; mas já então o meu amor á outra tinha attingido ao cume. Soube, pouco depois, que Maria Cora vivia separada do marido. Tinham casado oito annos antes, por verdadeira paixão. Viveram felizes cinco. Um dia, sobreveiu uma aventura do marido que destruiu a paz do casal. João da Fonseca apaixonou-se por uma figura de circo, uma chilena que voava em cima do cavallo, Dolores, e deixou a estancia para ir atraz della. Voltou seis mezes depois, curado do amor, mas curado á força, porque a aventureira se namorou do redactor de um jornal, que não tinha vintem, e por elle abandonou Fonseca e a sua prataria. A esposa tinha jurado não acceitar mais o esposo, e tal foi a declaração que lhe fez quando elle appareceu na estancia. --Tudo está acabado entre nós; vamos desquitar-nos. João da Fonseca teve um primeiro gesto de accordo; era um quadragenario orgulhoso, para quem tal proposta era de si mesma uma offensa. Durante uma noite tratou dos preparativos para o desquite; mas, na seguinte manhã, a vista das graças da esposa novamente o commoveram. Então, sem tom implorativo, antes como quem lhe perdoava, entendeu dizer-lhe que deixasse passar uns seis mezes. Se ao fim de seis mezes, persistisse o sentimento actual que inspirava a proposta do desquite, este se faria. Maria Cora não queria aceitar a emenda, mas a tia, que residia em Porto Alegre e fôra passar algumas semanas na estancia, interveiu com boas palavras. Antes de tres mezes estavam reconciliados. --João, disse-lhe a mulher no dia seguinte ao da reconciliação, você deve ver que o meu amor é maior que o meu ciume, mais fica entendido que este caso da nossa vida é unico. Nem você me fará outra, nem eu lhe perdoarei nada mais. João da Fonseca achava-se então em um renascimento do delirio conjugal; respondeu á mulher jurando tudo e mais alguma cousa. Aos quarenta annos, concluiu elle, não se fazem duas aventuras daquellas, e a minha foi de doer. Você verá, agora é para sempre. A vida recomeçou tão feliz, como d'antes,--elle dizia que mais. Com effeito, a paixão da esposa era violenta, e o marido tornou a amal-a como outr'ora. Viveram assim dous annos. Ao fim desse tempo, os ardores do marido haviam diminuido, alguns amores passageiros vieram metter-se entre ambos. Maria Cora, ao contrario do que lhe dissera, perdoou essas faltas, que aliás não tiveram a extensão nem o vulto da aventura Dolores. Os desgostos, entretanto, appareceram e grandes. Houve scenas violentas. Ella parece que chegou mais de uma vez a ameaçar que se mataria; mas, posto não lhe faltasse o preciso animo, não fez tentativa nenhuma, a tal ponto lhe doia deixar a propria causa do mal, que era o marido. João da Fonseca percebeu isto mesmo, e acaso explorou a fascinação que exercia na mulher. Uma circumstancia politica veiu complicar esta situação moral. João da Fonseca era pelo lado da revolução, dava-se com varios dos seus chefes, e pessoalmente detestava alguns dos contrarios. Maria Cora, por laços de familia, era adversa aos federalistas. Esta opposição de sentimentos não seria bastante para separal-os, nem se póde dizer que, por si mesma, azedasse a vida dos dous. Embora a mulher, ardente em tudo, não o fosse menos em condemnar a revolução, chamando nomes crús aos seus chefes e officiaes; embora o marido, tambem excessivo, replicasse com egual odio, os seus arrufos politicos apenas augmentariam os domesticos, e provavelmente não passariam dessa troca de conceitos, se uma nova Dolores, desta vez Prazeres, e não chilena nem saltimbanca, não revivesse os dias amargos de outro tempo. Prazeres era ligada ao partido da revolução, não só pelos sentimentos, como pelas relações da vida com um federalista. Eu a conheci pouco depois, era bella e airosa; João da Fonseca era tambem um homem gentil e seductor. Podiam amar-se fortemente, e assim foi. Vieram incidentes, mais ou menos graves, até que um decisivo determinou a separação do casal. Já cuidavam disto desde algum tempo, mas a reconciliação não seria impossivel, apesar da palavra de Maria Cora, graças á intervenção da tia; esta havia insinuado á sobrinha que residisse tres ou quatro mezes no Rio de Janeiro ou em S. Paulo. Succedeu, porém, uma cousa triste de dizer. O marido, em um momento de desvario, ameaçou a mulher com o rebenque. Outra versão diz que elle tentára esganal-a. Quero crer que a veridica é a primeira, e que a segunda foi inventada para tirar á violencia de João da Fonseca o que pudesse haver deprimente e vulgar. Maria Cora não disse mais uma só palavra ao marido. A separação foi immediata; a mulher veiu com a tia para o Rio de Janeiro, depois de arranjados amigavelmente os interesses pecuniarios. Demais, a tia era rica. João da Fonseca e Prazeres ficaram vivendo juntos uma vida de aventuras que não importa escrever aqui. Só uma cousa interessa directamente á minha narração. Tempos depois da separação do casal, João da Fonseca estava alistado entre os revolucionarios. A paixão politica, posto que forte, não o levaria a pegar em armas, se não fosse uma especie de desafio da parte de Prazeres; assim correu entre os amigos delle, mas ainda este ponto é obscuro. A versão é que ella, exasperada com o resultado de alguns combates, disse ao estancieiro que iria, disfarçada em homem, vestir farda de soldado e bater-se pela revolução. Era capaz disto; o amante disse-lhe que era uma loucura, ella acabou propondo-lhe que, nesse caso, fosse elle bater-se em vez della; era uma grande prova de amor que lhe daria. --Não te tenho dado tantas? --Tem, sim; mas esta é a maior de todas, esta me fará captiva até á morte. --Então agora ainda não é até á morte? perguntou elle rindo. --Não. Póde ser que as cousas se passassem assim. Prazeres era, com effeito, uma mulher caprichosa e imperiosa, e sabia prender um homem por laços de ferro. O federalista, de quem se separou para acompanhar João da Fonseca, depois de fazer tudo para rehavel-a, passou á campanha oriental, onde dizem que vive pobremente, encanecido e envelhecido vinte annos, sem querer saber de mulheres nem de politica. João da Fonseca acabou cedendo; ella pediu para acompanhal-o, e até bater-se, se fosse preciso; elle negou-lh'o. A revolução triumpharia em breve, disse; vencidas as forças do governo, tornaria á estancia, onde ella o esperaria. --Na estancia, não, respondeu Prazeres; espero-te em Porto Alegre. IV Não importa dizer o tempo que despendi nos inicios da minha paixão, mas não foi grande. A paixão cresceu rapida e forte. Afinal senti-me tão tomado della que não pude mais guardal-a commigo, e resolvi declarar-lh'a uma noite; mas a tia, que usava cochilar desde as nove horas (accordava ás quatro) d'aquella vez não pregou olho, e, ainda que o fizesse, é provavel que eu não alcançasse falar; tinha a voz presa e na rua senti uma vertigem egual á que me deu a primeira paixão da minha vida. --Sr. Corrêa, não vá cair, disse a tia quando eu passei á varanda, despedindo-me. --Deixe estar, não caio. Passei mal a noite; não pude dormir mais de duas horas, aos pedaços, e antes das cinco estava em pé. --É preciso acabar com isto! exclamei. De facto, não parecia achar em Maria Cora mais que benevolencia e perdão, mas era isso mesmo que a tornava appetecivel. Todos os amores da minha vida tinham sido faceis; em nenhuma encontrei resistencia, a nenhuma deixei com dôr; alguma pena, é possivel, e um pouco de recordação. Desta vez sentia-me tomado por ganchos de ferro. Maria Cora era toda vida; parece que, ao pé della, as proprias cadeiras andavam e as figuras do tapete moviam os olhos. Põe nisso uma forte dose de meiguice e graça; finalmente, a ternura da tia fazia d'aquella creatura um anjo. É banal a comparação, mas não tenho outra. Resolvi cortar o mal pela raiz, não tornando ao Engenho Velho, e assim fiz por alguns dias largos, duas ou tres semanas. Busquei distrair-me e esquecel-a, mas foi em vão. Comecei a sentir a ausencia como de um bem querido; apesar d'isso, resisti e não tornei logo. Mas, crescendo a ausencia, cresceu o mal, e emfim resolvi tornar lá uma noite. Ainda assim póde ser que não fosse, a não achar Maria Cora na mesma officina da rua da Quitanda, aonde eu fôra acertar o relogio parado. --É freguez tambem? perguntou-me ao entrar. --Sou. --Vim acertar o meu. Mas, porque não tem apparecido? --É verdade, porque não voltou lá á casa? completou a tia. --Uns negocios, murmurei; mas, hoje mesmo contava ir lá. --Hoje não; vá amanhã, disse a sobrinha. Hoje vamos passar a noite fóra. Pareceu-me ler naquella palavra um convite a amal-a de vez, assim como a primeira trouxera um tom que presumi ser de saudade. Realmente, no dia seguinte, fui ao Engenho Velho. Maria Cora acolheu-me com a mesma boa vontade de antes. O poeta lá estava e contou-me em verso os suspiros que a tia dera por mim. Entrei a frequental-as novamente e resolvi declarar tudo. Já acima disse que ella provavelmente percebera ou adivinhára o que eu sentia, como todas as mulheres; referi-me aos primeiros dias. D'esta vez com certeza percebeu, nem por isso me repelliu. Ao contrario, parecia gostar de se ver querida, muito e bem. Pouco depois d'aquella noite escrevi-lhe uma carta e fui ao Engenho Velho. Achei-a um pouco retrahida; a tia explicou-me que recebera noticias do Rio Grande que a affligiram. Não liguei isto ao casamento, e busquei alegral-a; apenas consegui vel-a cortez. Antes de sair, perto da varanda, entreguei-lhe a carta; ia a dizer-lhe: «Peço-lhe que leia», mas a voz não saiu. Vi-a um pouco atrapalhada, e para evitar dizer o que melhor ia escripto, comprimentei-a e enfiei pelo jardim. Póde imaginar-se a noite que passei, e o dia seguinte foi naturalmente egual, á medida que a outra noite vinha. Pois, ainda assim, não tornei á casa d'ella; resolvi esperar tres ou quatro dias, não que ella me escrevesse logo, mas que pensasse nos termos da resposta. Que estes haviam de ser sympathicos, era certeza minha; as maneiras della, nos ultimos tempos, eram mais que affaveis, pareciam-me convidativas. Não cheguei, porém, aos quatro dias; mal pude esperar tres. Na noite do terceiro fui ao Engenho Velho. Se disser que entrei tremulo da primeira commoção, não minto. Achei-a ao piano, tocando para o poeta ouvir; a tia, na poltrona, pensava em não sei qué, mas eu quasi não a vi, tal a minha primeira allucinação. --Entre, Sr. Correia, disse esta; não caia em cima de mim. --Perdão... Maria Cora não interrompeu a musica; ao ver-me chegar, disse: --Desculpe, se lhe não dou a mão, estou aqui servindo de musa a este senhor. Minutos depois, veiu a mim, e estendeu-me a mão com tanta galhardia, que li nella a resposta, e estive quasi a dar-lhe um agradecimento. Passaram-se alguns minutos, quinze ou vinte. Ao fim desse tempo, ella pretextou um livro, que estava em cima das musicas, e pediu-me para dizer se o conhecia; fomos alli ambos, e ella abriu-m'o; entre as duas folhas estava um papel. --Na outra noite, quando aqui esteve, deu-me esta carta; não podia dizer-me o que tem dentro? --Não adivinha? --Posso errar na adivinhação. --É isso mesmo. --Bem, mas eu sou uma senhora casada, e nem por estar separada do meu marido deixo de estar casada. O senhor ama-me, não é? Supponha, pelo melhor, que eu tambem o amo; nem por isso deixo de estar casada. Dizendo isto, entregou-me a carta; não fôra aberta. Se estivessemos sós, é possivel que eu lh'a lesse, mas a presença de extranhos impedia-me este recurso. Demais, era desnecessario; a resposta de Maria Cora era definitiva ou me pareceu tal. Peguei na carta, e antes de a guardar commigo: --Não quer então ler? --Não. --Nem para ver os termos? --Não. --Imagine que lhe proponho ir combater contra seu marido, matal-o e voltar, disse eu cada vez mais tonto. --Propõe isto? --Imagine. --Não creio que ninguem me ame com tal força, concluiu sorrindo. Olhe, que estão reparando em nós. Dizendo isto, separou-se de mim, e foi ter com a tia e o poeta. Eu fiquei ainda alguns segundos com o livro na mão, como se devéras o examinasse, e afinal deixei-o. Vim sentar-me defronte della. Os tres conversavam de cousas do Rio Grande, de combates entre federalistas e legalistas, e da varia sorte delles. O que eu então senti não se escreve; pelo menos, não o escrevo eu, que não sou romancista. Foi uma especie de vertigem, um delirio, uma scena pavorosa e lucida, um combate e uma gloria. Imaginei-me no campo, entre uns e outros, combatendo os federalistas, e afinal matando João da Fonseca, voltando e casando-me com a viuva. Maria Cora contribuia para esta visão seductora; agora, que me recusára a carta, parecia-me mais bella que nunca, e a isto accrescia que se não mostrava zangada nem offendida, tratava-me com egual carinho que antes, creio até que maior. Disto podia sair uma impressão dupla e contraria,--uma de acquiescencia tacita, outra de indifferença, mas eu só via a primeira, e sai de lá completamente louco. O que então resolvi foi realmente de louco. As palavras de Maria Cora: «Não creio que ninguem me ame com tal força»--soavam-me aos ouvidos, como um desafio. Pensei nellas toda a noite, e no dia seguinte fui ao Engenho Velho; logo que tive occasião de jurar-lhe a prova, fil-o. --Deixo tudo o que me interessa, a começar pela paz, com o unico fim de lhe mostrar que a amo, e a quero só e santamente para mim. Vou combater a revolta. Maria Cora fez um gesto de deslumbramento. Daquella vez percebi que realmente gostava de mim, verdadeira paixão, e se fosse viuva, não casava com outro. Jurei novamente que ia para o Sul. Ella commovida, estendeu-me a mão. Estavamos em pleno romantismo. Quando eu nasci, os meus não acreditavam em outras provas de amor, e minha mãe contava-me os romances em versos de cavalleiros andantes que iam á Terra-Santa libertar o sepulcro de Christo por amor da fé e da sua dama. Estavamos em pleno romantismo. V Fui para o Sul. Os combates entre legalistas e revolucionarios eram continuos e sangrentos, e a noticia d'elles contribuiu a animar-me. Entretanto, como nenhuma paixão politica me levava a entrar na luta, força é confessar que por um instante me senti abatido e hesitei. Não era medo da morte, podia ser amor da vida, que é um synonymo; mas, uma ou outra cousa, não foi tal nem tamanha que fizesse durar por muito tempo a hesitação. Na cidade do Rio Grande encontrei um amigo, a quem eu por carta do Rio de Janeiro dissera muito reservadamente que ia lá por motivos politicos. Quiz saber quaes. --Naturalmente são reservados, respondi tentando sorrir. --Bem; mas uma cousa creio que posso saber, uma só, porque não sei absolutamente o que pense a tal respeito, nada havendo antes que me instrua. De que lado estás, legalistas ou revoltosos? --É boa! Se não fosse dos legalistas, não te mandaria dizer nada; viria ás escondidas. --Vens com alguma commissão secreta do marechal? --Não. Não me arrancou então mais nada, mas eu não pude deixar de lhe confiar os meus projectos, ainda que sem os seus motivos. Quando elle soube que aquelles eram alistar-me entre os voluntarios que combatiam a revolução, não poude crer em mim, e talvez desconfiasse que effectivamente eu levava algum plano secreto do presidente. Nunca da minha parte ouviu nada que pudesse explicar semelhante passo. Entretanto, não perdeu tempo em despersuadir-me; pessoalmente era legalista e falava dos adversarios com odio e furor. Passado o espanto, acceitou o meu acto, tanto mais nobre quanto não era inspirado por sentimento de partido. Sobre isto disse-me muita palavra bella e heroica, propria a levantar o animo de quem já tivesse tendencia para a luta. Eu não tinha nenhuma, fóra das razões particulares; estas, porém, eram agora maiores. Justamente acabava de receber uma carta da tia de Maria Cora, dando-me noticias dellas, e recommendações da sobrinha, tudo com alguma generalidade e certa sympathia verdadeira. Fui a Porto Alegre, alistei-me e marchei para a campanha. Não disse a meu respeito nada que pudesse despertar a curiosidade de ninguem, mas era difficil encobrir a minha condição, a minha origem, a minha viagem com o plano de ir combater a revolução. Fez-se logo uma lenda a meu respeito. Eu era um republicano antigo, riquissimo, enthusiasta, disposto a dar pela Republica mil vidas, se as tivesse, e resoluto a não poupar a unica. Deixei dizer isto e o mais, e fui. Como eu indagasse das forças revolucionarias com que estaria João da Fonseca, alguem quiz ver nisto uma razão de odio pessoal; tambem não faltou quem me suppozesse espião dos rebeldes, que ia pôr-me em communicação secreta com aquelle. Pessoas que sabiam das relações delle com a Prazeres, imaginavam que era um antigo amante desta que se queria vingar dos amores delle. Todas aquellas supposições morreram, para só ficar a do meu enthusiasmo politico; a da minha espionagem ia-me prejudicando; felizmente, não passou de duas cabeças e de uma noite. Levava commigo um retrato de Maria Cora; alcançára-o della mesma, uma noite, pouco antes do meu embarque, com uma pequena dedicatoria cerimoniosa. Já disse que estava em pleno romantismo; dado o primeiro passo, os outros vieram de si mesmos. E agora juntae a isto o amor proprio, e comprehendereis que de simples cidadão indifferente da capital saisse um guerreiro aspero da campanha rio-grandense. Nem por isso conto combates, nem escrevo para falar da revolução, que não teve nada commigo, por si mesma, senão pela occasião que me dava, e por algum golpe que lhe desfechei na estreita área da minha acção. João da Fonseca era o meu rebelde. Depois de haver tomado parte no combate de Sarandy e Coxilla Negra, ouvi que o marido de Maria Cora fôra morto, não sei em que recontro; mais tarde deram-me a noticia de estar com as forças de Gumercindo, e tambem que fôra feito prisioneiro e seguira, para Porto Alegre; mas ainda isto não era verdade. Disperso, com dois camaradas, encontrei um dia um regimento legal que ia em defeza da Encruzilhada, investida ultimamente por uma força dos federalistas; apresentei-me ao commandante e segui. Ahi soube que João da Fonseca estava entre essa força; deram-me todos os signaes delle, contaram-me a historia dos amores e a separação da mulher. A idéa de matal-o no turbilhão de um combate tinha algo phantastico; nem eu sabia se taes duellos eram possiveis em semelhantes occasiões, quando a força de cada homem tem de sommar com a de toda uma força unica e obediente a uma só direcção. Tambem me pareceu, mais de uma vez, que ia commetter um crime pessoal, e a sensação que isto me dava, podeis crer que não era leve nem doce; mas a figura de Maria Cora abraçava-me e absolvia com uma benção de felicidades. Atirei-me de vez. Não conhecia João da Fonseca; além dos signaes que me haviam dado, tinha de memoria um retrato delle que vira no Engenho Velho; se as feições não estivessem mudadas, era provavel que eu o reconhecesse entre muitos. Mas, ainda uma vez, seria este encontro possivel? Os combates em que eu entrára, já me faziam desconfiar que não era facil, ao menos. Não foi facil nem breve. No combate da Encruzilhada creio que me houve com a necessaria intrepidez e disciplina, e devo aqui notar que eu me ia acostumando á vida da guerra civil. Os odios que ouvia, eram forças reaes. De um lado e outro batiam-se com ardor, e a paixão que eu sentia nos meus ia-se pegando em mim. Já lêra o meu nome em uma ordem do dia, e de viva voz recebêra louvores, que commigo não pude deixar de achar justos, e ainda agora taes os declaro. Mas vamos ao principal, que é acabar com isto. Naquelle combate achei-me um tanto como o heróe de Stendhal na batalha de Waterloo; a differença é que o espaço foi menor. Por isso, e tambem porque não me quero deter em cousas de recordação facil, direi sómente que tive occasião de matar em pessoa a João da Fonseca. Verdade é que escapei de ser morto por elle. Ainda agora trago na testa a cicatriz que elle me deixou. O combate entre nós foi curto. Se não parecesse romanesco de mais, eu diria que João da Fonseca adivinhára o motivo e previra o resultado da acção. Poucos minutos depois da luta pessoal, a um canto da villa, João da Fonseca caiu prostrado. Quiz ainda lutar, e certamente lutou um pouco; eu é que não consenti na desforra, que podia ser a minha derrota, se é que raciocinei; creio que não. Tudo o que fiz foi cego pelo sangue em que o deixára banhado, e surdo pelo clamor e tumulto de combate. Matava-se, gritava-se, vencia-se; em pouco ficámos senhores do campo. Quando vi que João da Fonseca morrêra devéras, voltei ao combate por instantes; a minha ebriedade cessára um pouco, e os motivos primarios tornaram a dominar-me, como se fossem unicos. A figura de Maria Cora appareceu-me como um sorriso de approvação e perdão; tudo foi rapido. Haveis de ter lido que alli se apprehenderam tres ou quatro mulheres. Uma destas era a Prazeres. Quando, acabado tudo, a Prazeres viu o cadaver do amante, fez uma scena que me encheu de odio e de inveja. Pegou em si e deitou-se a abraçal-o; as lagrimas que verteu, as palavras que disse, fizeram rir a uns; a outros, se não enterneceram, deram algum sentimento de admiração. Eu, como digo, achei-me tomado de inveja e odio, mas tambem esse duplo sentimento desappareceu para não ficar nem admiração; acabei rindo. Prazeres, depois de honrar com dôr a morte do amante, ficou sendo a federalista que já era; não vestia farda, como dissera ao desafiar João da Fonseca, quiz ser prisioneira com os rebeldes e seguir com elles. É claro que não deixei logo as forças, bati-me ainda algumas vezes, mas a razão principal dominou, e abri mão das armas. Durante o tempo em que estive alistado, só escrevi duas cartas a Maria Cora, uma pouco depois de encetar aquella vida nova,--outra depois do combate da Encruzilhada; nesta não lhe contei nada do marido, nem da morte, nem sequer que o vira. Unicamente annunciei que era provavel acabasse brevemente a guerra civil. Em nenhuma das duas fiz a menor allusão aos meus sentimentos nem ao motivo do meu acto; entretanto, para quem soubesse delles, a carta era significativa. Maria Cora só respondeu á primeira das cartas, com serenidade, mas não com isenção. Percebia-se,--ou percebia-o eu,--que, não promettendo nada, tudo agradecia, e, quando menos, admirava. Gratidão e admiração podiam encaminhal-a ao amor. Ainda não disse,--e não sei como diga este ponto,--que na Encruzilhada, depois da morte de João da Fonseca, tentei degolal-o; mas nem queria fazel-o nem realmente o fiz. O meu objecto era ainda outro e romanesco. Perdoa-me tu, realista sincero, ha nisto tambem um pouco de realidade, e foi o que pratiquei, de accôrdo com o estado da minha alma: o que fiz foi cortar-lhe um molho de cabellos. Era o recibo da morte que eu levaria á viuva. VI Quando voltei ao Rio de Janeiro, tinham já passado muitos mezes do combate da Encruzilhada. O meu nome figurou não só em partes officiaes como em telegrammas e correspondencias, por mais que eu buscasse esquivar-me ao ruido e desapparecer na sombra. Recebi cartas de felicitações e de indagações. Não vim logo para o Rio de Janeiro, note-se; podia ter aqui alguma festa; preferi ficar em S. Paulo. Um dia, sem ser esperado, metti-me na estrada de ferro e entrei na cidade. Fui para a casa de pensão do Cattete. Não procurei logo Maria Cora. Pareceu-me até mais acertado que a noticia da minha vinda lhe chegasse pelos jornaes. Não tinha pessoa que lhe falasse; vexava-me ir eu mesmo a alguma redacção contar o meu regresso do Rio Grande; não era passageiro de mar, cujo nome viesse em lista nas folhas publicas. Passaram dous dias; no terceiro, abrindo uma destas, dei com o meu nome. Dizia-se alli que viera de S. Paulo e estivera nas lutas do Rio Grande, citavam-se os combates, tudo com adjectivos de louvor; emfim, que voltava á mesma pensão do Cattete. Como eu só contára alguma cousa ao dono da casa, podia ser elle o autor das notas; disse-me que não. Entrei a receber visitas pessoaes. Todas queriam saber tudo; eu pouco mais disse que nada. Entre os cartões, recebi dous de Maria Cora e da tia, com palavras de boas vindas. Não era preciso mais; restava-me ir agradecer-lhes, e dispuz-me a isso; mas, no proprio dia em que resolvi ir ao Engenho Velho, tive uma sensação de... De quê? Expliquem, se podem, o acanhamento que me deu a lembrança do marido de Maria Cora, morto ás minhas mãos. A sensação que ia ter diante della tolheu-me inteiramente. Sabendo-se qual foi o movel principal da minha acção militar, mal se comprehende aquella hesitação; mas, se considerardes que, por mais que me defendesse do marido e o matasse para não morrer, elle era sempre o marido, terás entendido o mal-estar que me fez adiar a visita. Afinal, peguei em mim e fui á casa della. Maria Cora estava de luto. Recebeu-me com bondade, e repetiu-me, como a tia, as felicitações escriptas. Falámos da guerra civil, dos costumes do Rio Grande, um pouco de politica, e mais nada. Não se disse de João da Fonseca. Ao sair de lá, perguntei a mim mesmo se Maria Cora estaria disposta a casar conmigo. --Não me parece que recuse, embora não lhe ache maneiras especiaes. Creio até que está menos affavel que d'antes... Terá mudado? Pensei assim, vagamente. Attribui a alteração ao estado moral da viuvez; era natural. E continuei a frequental-a, disposto a deixar passar a primeira phase do luto para lhe pedir formalmente a mão. Não tinha que fazer declarações novas; ella sabia tudo. Continuou a receber-me bem. Nenhuma pergunta me fez sobre o marido, a tia tambem não, e da propria revolução não se falou mais. Pela minha parte, tornando á situação anterior, busquei não perder tempo, fiz-me pretendente com todas as maneiras do officio. Um dia, perguntei-lhe se pensava em tornar ao Rio Grande. --Por ora, não. --Mas irá? --É possivel; não tenho plano nem prazo marcado; é possivel. Eu, depois de algum silencio, durante o qual olhava interrogativamente para ella, acabei por inquirir se antes de ir, caso fosse, não alteraria nada em sua vida. --A minha vida está tão alterada... Não me entendera; foi o que suppuz. Tratei de me explicar melhor, e escrevi uma carta em que lhe lembrava a entrega e a recusa da primeira e lhe pedia francamente a mão. Entreguei a carta, dous dias depois, com estas palavras: --Desta vez não recusará ler-me. Não recusou, acceitou a carta. Foi á saida, á porta da sala. Creio até que lhe vi certa commoção de bom agouro. Não me respondeu por escripto, como esperei. Passados tres dias, estava tão ancioso que resolvi ir ao Engenho Velho. Em caminho imaginei tudo: que me recusasse, que me acceitasse, que me adiasse, e já me contentava com a ultima hypothese, se não houvesse de ser a segunda. Não a achei em casa; tinha ido passar alguns dias na Tijuca. Sai de lá aborrecido. Pareceu-me que não queria absolutamente casar; mas então era mais simples dizel-o ou escrevel-o. Esta consideração trouxe-me esperanças novas. Tinha ainda presentes as palavras que me dissera, quando me devolveu a primeira carta, e eu lhe falei da minha paixão: «Supponha que eu o amo; nem por isso deixo de ser uma senhora casada.» Era claro que então gostava de mim, e agora mesmo não havia razão decisiva para crer o contrario, embora a apparencia fosse um tanto fria. Ultimamente, entrei a crer que ainda gostava, um pouco por vaidade, um pouco por sympathia, e não sei se por gratidão tambem; tive alguns vestigios disso. Não obstante, não me deu resposta á segunda carta. Ao voltar da Tijuca, vinha menos expansiva, acaso mais triste. Tive eu mesmo de lhe falar na materia; a resposta foi que, por ora, estava disposta a não casar. --Mas um dia...? perguntei depois de algum silencio. --Estarei velha. --Mas então... será muito tarde? --Meu marido póde não estar morto. Espantou-me esta objecção. --Mas a senhora está de luto. --Tal foi a noticia que li e me deram; póde não ser exacta. Tenho visto desmentir outras que se reputavam certas. --Quer certeza absoluta? perguntei. Eu posso dal-a. Maria Cora empallideceu. Certeza. Certeza de quê? Queria que lhe contasse tudo, mas tudo. A situação era tão penosa para mim que não hesitei mais, e, depois de lhe dizer que era intenção minha não lhe contar nada, como não contára a ninguem, ia fazel-o, unicamente para obedecer á intimação. E referi o combate, as suas phases todas, os riscos, as palavras, finalmente a morte de João da Fonseca. A ancia com que me ouviu foi grande, e não menor o abatimento final. Ainda assim, dominou-se, e perguntou-me: --Jura que me não está enganando? --Para que a enganar? O que tenho feito é bastante para provar que sou sincero. Amanhã, trago-lhe outra prova, se é preciso mais alguma. Levei-lhe os cabellos que cortára ao cadaver. Contei-lhe,--e confesso que o meu fim foi irrital-a contra a memoria do defunto,--contei-lhe o desespero da Prazeres. Descrevi essa mulher e as suas lagrimas. Maria Cora ouviu-me com os olhos grandes e perdidos; estava ainda com ciumes. Quando lhe mostrei os cabellos do marido, atirou-se a elles, recebeu-os, beijou-os, chorando, chorando, chorando... Entendi melhor sair e sair para sempre. Dias depois recebi a resposta á minha carta; recusava casar. Na resposta havia uma palavra que é a unica razão de escrever esta narrativa: «Comprehende que eu não podia aceitar a mão do homem que, embora lealmente, matou meu marido.» Comparei-a áquella outra que me dissera antes, quando eu me propunha sair a combate, matal-o e voltar: «Não creio que ninguem me ame com tal força.» E foi essa palavra que me levou á guerra. Maria Cora vive agora reclusa; de costume manda dizer uma missa por alma do marido, no anniversario do combate da Encruzilhada. Nunca mais a vi; e, cousa menos difficil, nunca mais esqueci dar corda ao relogio. Marcha funebre O deputado Cordovil não podia pregar olho uma noite de Agosto de 186... Viera cedo do Cassino Fluminense, depois da retirada do imperador, e durante o baile não tivera o minimo incommodo moral nem physico. Ao contrario, a noite foi excellente; tão excellente que um inimigo seu, que padecia do coração, falleceu antes das dez horas, e a noticia chegou ao Cassino pouco depois das onze. Naturalmente conclues que elle ficou alegre com a morte do homem, especie de vingança que os corações adversos e fracos tomam em falta de outra. Digo-te que conclues mal; não foi alegria, foi desabafo. A morte vinha de mezes, era daquellas que não acabam mais, e moem, mordem, comem, trituram a pobre creatura humana. Cordovil sabia dos padecimentos do adversario. Alguns amigos, para o consolar de antigas injurias, iam contar-lhe o que viam ou sabiam do enfermo, pregado a uma cadeira de braços, vivendo as noites horrivelmente, sem que as auroras lhe trouxessem esperanças, nem as tardes desenganos. Cordovil pagava-lhes com alguma palavra de compaixão, que o alviçareiro adoptava, e repetia, e era mais sincera naquelle que neste. Emfim acabára de padecer; dahi o desabafo. Este sentimento pegava com a piedade humana. Cordovil, salvo em politica, não gostava do mal alheio. Quando resava, ao levantar da cama: «Padre Nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa as nossas dividas, como nós perdoamos aos nossos devedores...» não imitava um de seus amigos que resava a mesma prece, sem todavia perdoar aos devedores, como dizia de lingua; esse chegava a cobrar além do que elles lhe deviam, isto é, se ouvia maldizer de alguem, decorava tudo e mais alguma cousa, e ia repetil-o a outra parte. No dia seguinte, porém, a bella oração de Jesus tornava a sair dos labios da vespera com a mesma caridade de officio. Cordovil não ia nas aguas d'esse amigo; perdoava devéras. Que entrasse no perdão um tantinho de preguiça, é possivel, sem aliás ser evidente. Preguiça amamenta muita virtude. Sempre é alguma cousa mingoar força á acção do mal. Não esqueça que o deputado só gostava do mal alheio em politica, e o inimigo morto era inimigo pessoal. Quanto á causa da inimizade, não a sei eu, e o nome do homem acabou com a vida. --Coitado! descançou, disse Cordovil. Conversaram da longa doença do finado. Tambem falaram das varias mortes d'este mundo, dizendo Cordovil que a todas preferia a de Cesar, não por motivo do ferro, mas por inesperada e rapida. --_Tu quoque?_ perguntou-lhe um collega rindo. Ao que elle, apanhando a allusão, replicou: --Eu, se tivesse um filho, quizera morrer ás mãos delle. O parricidio, estando fóra do commum, faria a tragedia mais tragica. Tudo foi assim alegre. Cordovil saiu do baile com somno, e foi cochilando no carro, apesar do mal calçado das ruas. Perto de casa, sentiu parar o carro e ouviu rumor de vozes. Era o caso de um defunto, que duas praças de policia estavam levantando do chão. --Assassinado? perguntou elle ao lacaio, que descêra da almofada para saber o que era. --Não sei, não, senhor. --Pergunta o que é. --Este moço sabe como foi, disse o lacaio, indicando um desconhecido, que falava a outros. O moço approximou-se da portinhola, antes que o deputado recusasse ouvil-o. Referiu-lhe então em poucas palavras o accidente a que assistira. --Vinhamos andando, elle adeante, eu atraz. Parece que assobiava uma polka. Indo a atravessar a rua para o lado do Mangue, vi que estacou o passo, a modo que torceu o corpo, não sei bem, e caiu sem sentidos. Um doutor, que chegou logo, descendo de um sobradinho, examinou o homem e disse que «morreu de repente». Foi-se juntando gente, a patrulha levou muito tempo a chegar. Agora pegou delle. Quer ver o defunto? --Não, obrigado. Já se póde passar? --Póde. --Obrigado. Vamos, Domingos. Domingos trepou á almofada, o cocheiro tocou os animaes, e o carro seguiu até á rua de S. Christovão, onde morava Cordovil. Antes de chegar á casa, Cordovil foi pensando na morte do desconhecido. Em si mesma, era boa; comparada á do inimigo pessoal, excellente. Ia a assobiar, cuidando sabe Deus em que delicia passada ou em que esperança futura; revivia o que vivêra, ou antevia o que podia viver, senão quando, a morte pegou da delicia ou da esperança, e lá se foi o homem ao eterno repouso. Morreu sem dôr, ou, se alguma teve, foi acaso brevissima, como um relampago que deixa a escuridão mais escura. Então poz o caso em si. Se lhe tem acontecido no Cassino a morte do Aterrado? Não seria dançando; os seus quarenta annos não dançavam. Podia até dizer que elle só dançou até aos vinte. Não era dado a moças, tivera uma affeição unica na vida,--aos vinte e cinco annos, casou e enviuvou ao cabo de cinco semanas para não casar mais. Não é que lhe faltassem noivas,--mórmente depois de perder o avô, que lhe deixou duas fazendas. Vendeu-as ambas e passou a viver comsigo, fez duas viagens á Europa, continuou a politica e a sociedade. Ultimamente parecia enojado de uma e de outra, mas não tendo em que matar o tempo, não abriu mão dellas. Chegou a ser ministro uma vez, creio que da marinha, não passou de sete mezes. Nem a pasta lhe deu gloria, nem a demissão desgosto. Não era ambicioso, e mais puxava para a quietação que para o movimento. Mas se lhe tivesse succedido morrer de repente no Cassino, ante uma valsa ou quadrilha, entre duas portas? Podia ser muito bem. Cordovil compoz de imaginação a scena, elle caido de bruços ou de costas, o prazer turbado, a dança interrompida... e d'ahi podia ser que não; um pouco de espanto apenas, outro de susto, os homens animando as damas, a orchestra continuando por instantes a opposição do compasso e da confusão. Não faltariam braços que o levasse para um gabinete, já morto, totalmente morto. --Tal qual a morte de Cesar, ia dizendo comsigo. E logo emendou: --Não, melhor que ella; sem ameaça, nem armas, nem sangue, uma simples queda e o fim. Não sentiria nada. Cordovil deu comsigo a rir ou a sorrir, alguma cousa que afastava o terror e deixava a sensação da liberdade. Em verdade, antes a morte assim que após longos dias ou longos mezes e annos, como o adversario que perdêra algumas horas antes. Nem era morrer; era um gesto de chapéo, que se perdia no ar com a propria mão e a alma que lhe déra movimento. Um cochilo e o somno eterno. Achava-lhe um só defeito,--o apparato. Essa morte no meio de um baile, defronte do imperador, ao som de Strauss, contada, pintada, enfeitada nas folhas publicas, essa morte pareceria de encommenda. Paciencia, uma vez que fosse repentina. Tambem pensou que podia ser na Camara, no dia seguinte, ao começar o debate do orçamento. Tinha a palavra; já andava cheio de algarismos e citações. Não quiz imaginar o caso, não valia a pena; mas o caso teimou e appareceu de si mesmo. O salão da Camara, em vez do Cassino, sem damas ou com poucas, nas tribunas. Vasto silencio. Cordovil em pé começaria o discurso, depois de circular os olhos pela casa, fitar o ministro e fitar o presidente: «Releve-me a Camara que lhe tome algum tempo, serei breve, buscarei ser justo...» Aqui uma nuvem lhe taparia os olhos, a lingua pararia, o coração tambem, e elle cairia de golpe no chão. Camara, galerias, tribunas ficariam assombradas. Muitos deputados correriam a erguel-o; um, que era medico, verificaria a morte; não diria que fôra de repente, como o do sobradinho do Aterrado, mas por outro estylo mais technico. Os trabalhos seriam suspensos, depois de algumas palavras do presidente e escolha da commissão que acompanharia o finado ao cemiterio... Cordovil quiz rir da circumstancia de imaginar além da morte, o movimento e o sahimento, as proprias noticias dos jornaes, que elle leu de cór e depressa. Quiz rir, mas preferia cochilar; os olhos é que, estando já perto de casa e da cama, não quizeram desperdiçar o somno, e ficaram arregalados. Então a morte, que elle imaginára pudesse ter sido no baile, antes de sair, ou no dia seguinte em plena sessão da Camara, appareceu alli mesmo no carro. Suppoz elle que, ao abrirem-lhe a portinhola, déssem com o seu cadaver. Sairia assim de uma noite ruidosa para outra pacifica, sem conversas, nem danças, nem encontros, sem especie alguma de luta ou resistencia. O estremeção que teve fez-lhe ver que não era verdade. Effectivamente, o carro entrou na chacara, estacou, e Domingos saltou da almofada para vir abrir-lhe a portinhola. Cordovil desceu com as pernas e a alma vivas, e entrou pela porta lateral, onde o aguardava com um castiçal e vela accesa o escravo Florindo. Subiu a escada, e os pés sentiam que os degraus eram d'este mundo; se fossem do outro, desceriam naturalmente. Em cima, ao entrar no quarto, olhou para a cama; era a mesma dos somnos quietos e demorados. --Veiu alguem? --Não, senhor, respondeu o escravo distrahido, mas corrigiu logo: Veiu, sim, senhor; veiu aquelle doutor que almoçou com meu senhor domingo passado. --Queria alguma cousa? --Disse que vinha dar a meu senhor uma boa noticia, e deixou este bilhete--que eu botei ao pé da cama. O bilhete referia a morte do inimigo; era de um dos amigos que usavam contar-lhe a marcha da molestia. Quiz ser o primeiro a annunciar o desenlace, um alegrão, com um abraço apertado. Emfim, morrêra o patife. Não disse a cousa assim por esses termos claros, mas os que empregou vinham a dar nelles, accrescendo que não attribuiu esse unico objecto á visita. Vinha passar a noite; só alli soube que Cordovil fôra ao Cassino. Ia a sair, quando lhe lembrou a morte e pediu ao Florindo que lhe deixasse escrever duas linhas. Cordovil entendeu o significado, e ainda uma vez lhe doeu a agonia do outro. Fez um gesto de melancolia e exclamou a meia voz: --Coitado! Vivam as mortes subitas! Florindo, se referisse o gesto e a phrase ao doutor do bilhete, talvez o fizesse arrepender da cançeira. Nem pensou nisso; ajudou o senhor a preparar-se para dormir, ouviu as ultimas ordens e despediu-se. Cordovil deitou-se. --Ah! suspirou elle estirando o corpo cançado. Teve então uma idéa, a de amanhecer morto. Esta hypothese, a melhor de todas, porque o apanharia meio morto, trouxe comsigo mil phantasias que lhe arredaram o somno dos olhos. Em parte, era a repetição das outras, a participação á Camara, as palavras do presidente, commissão para o sahimento, e o resto. Ouviu lastimas de amigos e de famulos, viu noticias impressas, todas lisonjeiras ou justas. Chegou a desconfiar que era já sonho. Não era. Chamou-se ao quarto, á cama, a si mesmo: estava accordado. A lamparina deu melhor corpo á realidade. Cordovil espancou as idéas funebres e esperou que as alegres tomassem conta delle e dançassem até cançal-o. Tentou vencer uma visão com outra. Fez até uma cousa engenhosa, convocou os cinco sentidos, porque a memoria de todos elles era aguda e fresca; foi assim evocando lances e rasgos longamente extinctos. Gestos, scenas de sociedade e de familia, panoramas, repassou muita cousa vista, com o aspecto do tempo diverso e remoto. Deixára de comer acepipes que outra vez lhe sabiam, como se estivesse agora a mastigal-os. Os ouvidos escutavam passos leves e pesados, cantos joviaes e tristes, e palavras de todos os feitios. O tacto, o olfacto, todos fizeram o seu officio, durante um prazo que elle não calculou. Cuidou de dormir e cerrou bem os olhos. Não poude, nem do lado direito, nem do esquerdo, de costas nem de bruços. Ergueu-se e foi ao relogio; eram tres horas. Insensivelmente levou-o á orelha a ver se estava parado; estava andando, déra-lhe corda. Sim, tinha tempo de dormir um bom somno; deitou-se, cobriu a cabeça para não ver a luz. Ah! foi então que o somno tentou entrar, calado e surdo, todo cautellas, como seria a morte, se quizesse leval-o de repente, para nunca mais. Cordovil cerrou os olhos com força, e fez mal, porque a força accentuou a vontade que tinha de dormir; cuidou de os afrouxar, e fez bem. O somno, que ia a recuar, tornou atraz, e veiu estirar-se ao lado delle, passando-lhe aquelles braços leves e pesados, a um tempo, que tiram á pessoa todo movimento. Cordovil os sentia, e com os seus quiz conchegal-os ainda mais... A imagem não é boa, mas não tenho outra á mão nem tempo de ir buscal-a. Digo só o resultado do gesto, que foi arredar o somno de si, tão aborrecido ficou este reformador de cançados. --Que terá elle hoje contra mim? perguntaria o somno, se falasse. Tu sabes que elle é mudo por essencia. Quando parece que fala é o sonho que abre a boca á pessoa; elle não, elle é a pedra, e ainda a pedra fala, se lhe batem, como estão fazendo agora os calceteiros da minha rua. Cada pancada accorda na pedra um som, e a regularidade do gesto torna aquelle som tão pontual que parece a alma de um relogio. Vozes de conversa ou de pregão, rodas de carro, passos de gente, uma janella batida pelo vento, nada dessas cousas que ora ouço, animava então a rua e a noite de Cordovil. Tudo era propicio ao somno. Cordovil ia finalmente dormir, quando a idéa de amanhecer morto appareceu outra vez. O somno recuou e fugiu. Esta alternativa durou muito tempo. Sempre que o somno ia a grudar-lhe os olhos, a lembrança da morte os abria, até que elle sacudiu o lençol e saiu da cama. Abriu uma janella e encostou-se ao peitoril. O céu queria clarear, alguns vultos iam passando na rua, trabalhadores e mercadores que desciam para o centro da cidade. Cordovil sentiu um arrepio; não sabendo se era frio ou medo, foi vestir um camisão de chita, e voltou para a janella. Parece que era frio, porque não sentia mais nada. A gente continuava a passar, o céu a clarear, e um assobio da estrada de ferro deu signal de trem que ia partir. Homens e cousas vinham do descanço; o céu fazia economia de estrellas, apagando-as, á medida que o sol ia chegando para o seu officio. Tudo dava idéa de vida. Naturalmente a idéa da morte foi recuando e desappareceu de todo, emquanto o nosso homem, que suspirou por ella no Cassino, que a desejou para o dia seguinte na Camara dos deputados, que a encarou no carro, voltou-lhe as costas quando a viu entrar com o somno, seu irmão mais velho,--ou mais moço, não sei. Quando veiu a fallecer, muitos annos depois, pediu e teve a morte, não subita, mas vagarosa, a morte de um vinho filtrado, que sae impuro de uma garrafa para entrar purificado em outra; a borra iria para o cemiterio. Agora é que lhe via a philosophia; em ambas as garrafas era sempre o vinho que ia ficando, até passar inteiro e pingado para a segunda. Morte subita não acabava de entender o que era. Um capitão de voluntarios Indo a embarcar para a Europa, logo depois da proclamação da Republica, Simão de Castro fez inventario das cartas e apontamentos; rasgou tudo. Só lhe ficou a narração que ides ler; entregou-a a um amigo para imprimil-a quando elle estivesse barra fóra. O amigo não cumpriu a recommendação por achar na historia alguma cousa que podia ser penosa, e assim lh'o disse em carta. Simão respondeu que estava por tudo o que quizesse; não tendo vaidades literarias, pouco se lhe dava de vir ou não a publico. Agora que os dous falleceram, e não ha egual escrupulo, dá-se o manuscripto ao prelo. * * * * * Eramos dous, ellas duas. Os dous iamos alli por visita, costume, desfastio, e finalmente por amizade. Fiquei amigo do dono da casa, elle meu amigo. Às tardes, sobre o jantar,--jantava-se cedo em 1866,--ia alli fumar um charuto. O sol ainda entrava pela janella, donde se via um morro com casas em cima. A janella opposta dava para o mar. Não digo a rua nem o bairro; a cidade posso dizer que era o Rio de Janeiro. Occultarei o nome do meu amigo; ponhamos uma letra, X... Ella, uma dellas, chamava-se Maria. Quando eu entrava, já elle estava na cadeira de balanço. Os moveis da sala eram poucos, os ornatos raros, tudo simples. X... estendia-me a mão larga e forte; eu ia sentar-me ao pé da janella, olho na sala, olho na rua. Maria, ou já estava ou vinha de dentro. Eramos nada um para o outro; ligava-nos unicamente a affeição de X... Conversavamos; eu saía para casa ou ia passear, elles ficavam e iam dormir. Algumas vezes jogavamos cartas, ás noites, e, para o fim do tempo, era alli que eu passava a maior parte destas. Tudo em X... me dominava. A figura primeiro. Elle robusto, eu franzino; a minha graça feminina, debil, desapparecia ao pé do garbo varonil delle, dos seus hombros largos, cadeiras largas, jarrete forte e o pé solido que, andando, batia rijo no chão. Dae-me um bigode escasso e fino; vêde nelle as suissas longas, espessas e encaracoladas, e um dos seus gestos habituaes, pensando ou escutando, era passar os dedos por ellas, encaracolando-as sempre. Os olhos completavam a figura, não só por serem grandes e bellos, mas por que riam mais e melhor que a boca. Depois da figura, a edade; X... era homem de quarenta annos, eu não passava dos vinte e quatro. Depois da edade, a vida; elle vivêra muito, em outro meio, donde saíra a encafuar-se naquella casa, com aquella senhora; eu não vivêra nada nem com pessoa alguma. Emfim,--e este rasgo é capital,--havia nelle uma fibra castelhana, uma gotta do sangue que circula nas paginas de Calderon, uma attitude moral que posso comparar, sem depressão nem riso, á do heróe de Cervantes. Como se tinham amado? Datava de longe. Maria contava já vinte e sete annos, e parecia haver recebido alguma educação. Ouvi que o primeiro encontro fôra em um baile de mascaras, no antigo Theatro Provisorio. Ella trajava uma saia curta, e dançava ao som de um pandeiro. Tinha os pés admiraveis, e foram elles ou o seu destino a causa do amor de X... Nunca lhe perguntei a origem da alliança; sei só que ella tinha uma filha, que estava no collegio e não vinha á casa; a mãe é que ia vê-la. Verdadeiramente as nossas relações eram respeitosas, e o respeito ia ao ponto de acceitar a situação sem a examinar. Quando comecei a ir alli, não tinha ainda o emprego no banco. Só dous ou tres mezes depois é que entrei para este, e não interrompi as relações. Maria tocava piano; ás vezes, ella e a amiga Raymunda conseguiam arrastar X... ao theatro; eu ia com elles. No fim, tomavamos chá em sala particular, e, uma ou outra vez, se havia lua, acabavamos a noite indo de carro a Botafogo. A estas festas não ia Barreto, que só mais tarde começou a frequentar a casa. Entretanto, era bom companheiro, alegre e rumoroso. Uma noite, como saissemos de lá, encaminhou a conversa para as duas mulheres, e convidou-me a namoral-as. --Tu escolhes uma, Simão, eu outra. Estremecei e parei. --Ou antes, eu já escolhi, continuou elle; escolhi a Raymunda. Gosto muito da Raymunda. Tu, escolhe a outra. --A Maria? --Pois que outra ha de ser. O alvoroço que me deu este tentador foi tal que não achei palavra de recusa, nem palavra nem gesto. Tudo me pareceu natural e necessario. Sim, concordei em escolher Maria; era mais velha que eu tres annos, mas tinha a edade conveniente para ensinar-me a amar. Está dito, Maria. Deitámo-nos ás duas conquistas com ardor e tenacidade. Barreto não tinha que vencer muito; a eleita delle não trazia amores, mas até pouco antes padecêra de uns que rompêra contra a vontade, indo o amante casar com uma moça de Minas. Depressa se deixou consolar. Barreto um dia, estando eu a almoçar, veiu annunciar-me que recebêra uma carta della, e mostrou-m'a. --Estão entendidos? --Estamos. E vocês? --Eu não. --Então quando? --Deixa ver; eu te digo. Naquelle dia fiquei meio vexado. Com effeito, apezar da melhor vontade deste mundo, não me atrevia a dizer a Maria os meus sentimentos. Não supponhas que era nenhuma paixão. Não tinha paixão, mas curiosidade. Quando a via esbelta e fresca, toda calor e vida, sentia-me tomado de uma força nova e mysteriosa; mas, por um lado, não amára nunca, e, por outro, Maria era a companheira de meu amigo. Digo isto, não para explicar escrupulos, mas unicamente para fazer comprehender o meu acanhamento. Viviam juntos desde alguns annos, um para o outro. X... tinha confiança em mim, confiança absoluta, communicava-me os seus negocios, contava-me cousas da vida passada. Apezar da desproporção da edade, eramos como estudantes do mesmo anno. Como entrasse a pensar mais constantemente em Maria, é provavel que por algum gesto lhe houvesse descoberto o meu recente estado; certo é que, um dia, ao apertar-lhe a mão, senti que os dedos della se demoravam mais entre os meus. Dous dias depois, indo ao correio, encontrei-a sellando uma carta para a Bahia. Ainda não disse que era bahiana? Era bahiana. Ella é que me viu primeiro e me falou. Ajudei-lhe a pôr o sello e despedimo-nos. Á porta ia a dizer alguma cousa, quando vi ante nós, parada, a figura de X... --Vim trazer a carta para mamãe, apressou-se ella em dizer. Despediu-se de nós e foi para casa; elle e eu tomámos outro rumo. X... aproveitou a occasião para fazer muitos elogios de Maria. Sem entrar em minudencias ácerca da origem das relações, assegurou-me que fôra uma grande paixão egual em ambos, e concluiu que tinha a vida feita. --Já agora não me caso; vivo maritalmente com ella, morrerei com ella. Tenho só uma pena; é ser obrigado a viver separado de minha mãe. Minha mãe sabe, disse-me elle parando. E continuou andando: sabe, e até já me fez uma allusão muito vaga e remota, mas que eu percebi. Consta-me que não desapprova; sabe que Maria é séria e boa, e uma vez que eu seja feliz, não exige mais nada. O casamento não me daria mais que isto.... Disse muitas outras cousas, que eu fui ouvindo sem saber de mim; o coração batia-me rijo, e as pernas andavam frouxas. Não atinava com resposta idonea; alguma palavra que soltava, saia-me engasgada. Ao cabo de algum tempo, elle notou o meu estado e interpretou-o erradamente; suppoz que as suas confidencias me aborreciam, e disse-m'o rindo. Contestei serio; --Ao contrario, ouço com interesse, e trata-se de pessoa de toda a consideração e respeito. Penso agora que cedia inconscientemente a uma necessidade de hypocrisia. A edade das paixões é confusa, e naquella situação não posso discernir bem os sentimentos e suas causas. Entretanto, não é fóra de proposito que buscasse dissipar no animo de X... qualquer possivel desconfiança. A verdade é que elle me ouviu agradecido. Os seus grandes olhos de creança envolveram-me todo, e quando nos despedimos, apertou-me a mão com energia. Creio até que lhe ouvi dizer: «Obrigado!» Não me separei delle atterrado, nem ferido de remorsos previos. A primeira impressão da confidencia esvaiu-se, ficou só a confidencia, e senti crescer-me o alvoroço da curiosidade. X... falára-me de Maria como de pessoa casta e conjugal; nenhuma allusão ás suas prendas physicas, mas a minha edade dispensava qualquer referencia directa. Agora, na rua, via de cór a figura da moça, os seus gestos egualmente languidos e robustos, e cada vez me sentia mais fóra de mim. Em casa escrevi-lhe uma carta longa e diffusa, que rasguei meia hora depois, e fui jantar. Sobre o jantar fui á casa de X... Eram ave-marias. Elle estava na cadeira de balanço, eu sentei-me no logar do costume, olho na sala, olho no morro. Maria appareceu tarde, depois das horas, e tão anojada que não tomou parte na conversação. Sentou-se e cochilou; depois tocou um pouco de piano e saiu da sala. --Maria accordou hoje com a mania de colher donativos para a guerra, disse-me elle. Já lhe fiz notar que nem todos quererão parecer que... Você sabe... A posição della... Felizmente, a idéa ha de passar; tem dessas phantasias... --E porque não? --Ora, porque não! E depois, a guerra do Paraguay, não digo que não seja como todas as guerras, mas palavra, não me enthusiasma. A principio, sim, quando o Lopez tomou o _Marquez de Olinda_, fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que tinhamos feito muito melhor se nos alliassemos ao Lopez contra os argentinos. --Eu não. Prefiro os argentinos. --Tambem gosto delles, mas, no interesse da nossa gente, era melhor ficar com o Lopez. --Não; olhe, eu estive quasi a alistar-me como voluntario da patria. --Eu, nem que me fizessem coronel, não me alistava. Elle disse não sei que mais. Eu, como tinha a orelha afiada, á escuta dos pés de Maria, não respondi logo, nem claro, nem seguido; fui engrolando alguma palavra e sempre á escuta. Mas o diabo da moça não vinha; imaginei que estariam arrufados. Emfim, propuz cartas, podiamos jogar uma partida de voltarete. --Podemos, disse elle. Passámos ao gabinete. X... poz as cartas na mesa e foi chamar a amiga. Dalli ouvi algumas phrases sussurradas, mas só estas me chegaram claras: --Vem! é só meia hora. --Que massada! Estou doente. Maria appareceu no gabinete, bocejando. Disse-me que era só meia hora; tinha dormido mal, doia-lhe a cabeça e contava deitar-se cedo. Sentou-se enfastiada, e começámos a partida. Eu arrependia-me de haver rasgado a carta; lembravam-me alguns trechos della, que diriam bem o meu estado, com o calor necessario a persuadil-a. Se a tenho conservado, entregava-lh'a agora; ella ia muita vez ao patamar da escada despedir-se de mim e fechar a cancella. Nessa occasião podia dar-lh'a; era uma solução da minha crise. Ao cabo de alguns minutos, X... levantou-se para ir buscar tabaco de uma caixa de folha de Flandres, posta sobre a secretaria. Maria fez então um gesto que não sei como diga nem pinte. Ergueu as cartas á altura dos olhos para os tapar, voltou-os para mim que lhe ficava á esquerda, e arregalou-os tanto e com tal fogo e attracção, que não sei como não entrei por elles. Tudo foi rapido. Quando elle voltou fazendo um cigarro, Maria tinha as cartas embaixo dos olhos, abertas em leque, fitando-as como se calculasse. Eu devia estar tremulo; não obstante, calculava tambem, com a differença de não poder falar. Ella disse então com placidez uma das palavras do jogo, _passo_ ou _licença_. Jogámos cerca de uma hora. Maria, para o fim, cochilava literalmente, e foi o proprio X... que lhe disse que era melhor ir descançar. Despedi-me e passei ao corredor, onde tinha o chapéo e a bengala. Maria, á porta da sala, esperava que eu saisse e acompanhou-me até á cancella, para fechal-a. Antes que eu descesse, lançou-me um dos braços ao pescoço, chegou-me a si, collou-me os labios nos labios, onde elles me depositaram um beijo grande, rapido e surdo. Na mão senti alguma cousa. --Boa noite, disse Maria fechando a cancella. Não sei como não caí. Desci atordoado, com o beijo na boca, os olhos nos della, e a mão apertando instinctivamente um objecto. Cuidei de me pôr longe. Na primeira rua, corri a um lampião, para ver o que trazia. Era um cartão de loja de fazendas, um annuncio, com isto escripto nas costas, a lapis: «Espere-me amanhã, na ponte das barcas de Nietheroy, a uma hora da tarde.» O meu alvoroço foi tamanho que durante os primeiros minutos não soube absolutamente o que fiz. Em verdade, as emoções eram demasiado grandes e numerosas, e tão de perto seguidas que eu mal podia saber de mim. Andei até ao largo de S. Francisco de Paula. Tornei a ler o cartão; arrepiei caminho, novamente parei, e uma patrulha que estava perto, talvez desconfiou dos meus gestos. Felizmente, a despeito da commoção, tinha fome e fui cear ao Hotel dos Principes. Não dormi antes da madrugada; ás seis horas estava em pé. A manhã foi lenta como as agonias lentas. Dez minutos antes de uma hora cheguei á ponte; já lá achei Maria, envolvida n'uma capa, e com um veu azul no rosto. Ia sair uma barca, entrámos nella. O mar acolheu-nos bem. A hora era de poucos passageiros. Havia movimento de lanchas, de aves, e o ceu luminoso parecia cantar a nossa primeira entrevista. O que dissemos foi tão de atropello e confusão que não me ficou mais de meia duzia de palavras, e dellas nenhuma foi o nome de X... ou qualquer referencia a elle. Sentiamos ambos que trahiamos, eu o meu amigo, ella o seu amigo e protector. Mas, ainda que o não sentissemos, não é provavel que falassemos delle, tão pouco era o tempo para o nosso infinito. Maria appareceu-me então como nunca a vi nem suspeitára, falando de mim e de si, com a ternura possivel naquelle logar publico, mas toda a possivel, não menos. As nossas mãos collavam-se, os nossos olhos comiam-se, e os corações batiam provavelmente ao mesmo compasso rapido e rapido. Pelo menos foi a sensação com que me separei della, após a viagem redonda a Nictheroy e S. Domingos. Convidei-a a desembarcar em ambos os pontos, mas recusou; na volta, lembrei-lhe que nos mettessemos n'uma caleça fechada: «Que idéa faria de mim?» perguntou-me com um gesto de pudor que a transfigurou. E despedimo-nos com prazo dado, jurando-lhe que eu não deixaria de ir vel-os, á noite, como de costume. Como eu não tomei da penna para narrar a minha felicidade, deixo a parte deliciosa da aventura, com as suas entrevistas, cartas e palavras, e mais os sonhos e esperanças, as infinitas saudades e os renascentes desejos. Taes aventuras são como os almanaks, que, com todas as suas mudanças, hão de trazer os mesmos dias e mezes, com os seus eternos nomes e santos. O nosso almanak apenas durou um trimestre, sem quartos minguantes nem occasos de sol. Maria era um modelo de graças finas, toda vida, todo movimento. Era bahiana, como disse, fôra educada no Rio Grande do Sul, na campanha, perto da fronteira. Quando lhe falei do seu primeiro encontro com X... no Theatro Provisorio, dançando ao som de um pandeiro, disse-me que era verdade, fôra alli vestida á castelhana e de mascara; e, como eu lhe pedisse a mesma cousa, menos a mascara, ou um simples lundú nosso, respondeu-me como quem recusa um perigo: --Você poderia ficar doudo. --Mas X... não ficou doudo. --Ainda hoje não está em seu juizo, replicou Maria rindo. Imagina que eu fazia isto só... E em pé, n'um meneio rapido, deu uma volta ao corpo, que me fez ferver o sangue. O trimestre acabou depressa, como os trimestres daquella casta. Maria faltou um dia á entrevista. Era tão pontual que fiquei tonto quando vi passar a hora. Cinco, dez, quinze minutos; depois vinte, depois trinta, depois quarenta... Não digo as vezes que andei de um lado para outro, na sala, no corredor, á espreita e á escuta, até que de todo passou a possibilidade de vir. Poupo a noticia do meu desespero, o tempo que rolei no chão, falando, gritando ou chorando. Quando cancei, escrevi-lhe uma longa carta; esperei que me escrevesse tambem, explicando a falta. Não mandei a carta, e á noite fui á casa delles. Maria poude explicar-me a falta pelo receio de ser vista e acompanhada por alguem que a perseguia desde algum tempo. Com effeito, havia-me já falado em não sei que vizinho que a cortejava com instancia; uma vez disse-me que elle a seguira até á porta da minha casa. Acreditei na razão, e propuz-lhe outro logar de encontro, mas não lhe pareceu conveniente. Desta vez achou melhor suspendermos as nossas entrevistas, até fazer calar as suspeitas. Não sairia de casa. Não comprehendi então que a principal verdade era ter cessado nella o ardor dos primeiros dias. Maria era outra, principalmente outra. E não pódes imaginar o que vinha a ser essa bella creatura, que tinha em si o fogo e o gelo, e era mais quente e mais fria que ninguem. Quando me entrou a convicção de que tudo estava acabado, resolvi não voltar lá, mas nem por isso perdia a esperança; era para mim questão de esforço. A imaginação, que torna presentes os dias passados, fazia-me crer facilmente na possibilidade de restaurar as primeiras semanas. Ao cabo de cinco dias, voltei: não podia viver sem ella. X... recebeu-me com o seu grande riso infante, os olhos puros, a mão forte e sincera; perguntou a razão da minha ausencia. Alleguei uma febresinha, e, para explicar o enfadamento que eu não podia vencer, disse que ainda me doia a cabeça. Maria comprehendeu tudo; nem por isso se mostrou meiga ou compassiva, e, á minha saida, não foi até ao corredor, como de costume. Tudo isto dobrou a minha angustia. A idéa de morrer entrou a passar-me pela cabeça; e, por uma symetria romantica, pensei em metter-me na barca de Nictheroy, que primeiro acolheu os nossos amores, e, no meio da bahia, atirar-me ao mar. Não iniciei tal plano nem outro. Tendo encontrado casualmente o meu amigo Barreto, não vacillei em lhe dizer tudo; precisava de alguem para falar commigo mesmo. No fim pedi-lhe segredo; devia pedir-lhe que especialmente não contasse nada a Raymunda. Nessa mesma noite ella soube tudo. Raymunda era um espirito aventureiro, amigo de entreprezas e novidades. Não se lhe dava, talvez, de mim nem da outra, mas viu naquillo um lance, uma occupação, e cuidou em reconciliar-nos; foi o que eu soube depois, e é o que dá logar a este papel. Falou-lhe uma e mais vezes. Maria quiz negar a principio, acabou confessando tudo, dizendo-se arrependida da cabeçada que déra. Usaria provavelmente de circumloquios e synonymos, phrases vagas e truncadas, alguma vez empregaria só gestos. O texto que ahi fica é o da propria Raymunda, que me mandou chamar á casa della e me referiu todos os seus esforços, contente de si mesma. --Mas não perca as esperanças, concluiu; eu disse-lhe que o senhor era capaz de matar-se. --E sou. --Pois não se mate por ora; espere. No dia seguinte vi nos jornaes uma lista de cidadãos que, na vespera, tinham ido ao quartel-general apresentar-se como voluntarios da patria, e nella o nome de X..., com o posto de capitão. Não acreditei logo; mas eram os mesmos, na mesma ordem, e uma das folhas fazia referencias á familia de X..., ao pae, que fôra official de marinha, e á figura esbelta e varonil do novo capitão; era elle mesmo. A minha primeira impressão foi de prazer; iamos ficar sós. Ella não iria de vivandeira para o Sul. Depois, lembrou-me o que elle me disse ácerca da guerra, e achei extranho o seu alistamento de voluntario, ainda que o amor dos actos generosos e a nota cavalheiresca do espirito de X... pudessem explical-o. Nem de coronel iria, disse-me, e agora acceitava o posto de capitão. Emfim, Maria; como é que elle, que tanto lhe queria, ia separar-se della repentinamente, sem paixão forte que o levasse á guerra? Havia tres semanas que eu não ia á casa delles. A noticia do alistamento justificava a minha visita immediata e dispensava-me de explicações. Almocei e fui. Compuz um rosto ajustado á situação e entrei. X... veiu á sala, depois de alguns minutos de espera. A cara desdizia das palavras; estas queriam ser alegres e leves, aquella era fechada e torva, além de pallida. Estendeu-me a mão, dizendo: --Então, vem ver o capitão de voluntarios? --Venho ouvir o desmentido. --Que desmentido? É pura verdade. Não sei como isto foi, creio que as ultimas noticias... Você porque não vem commigo? --Mas então é verdade? --É Após alguns instantes de silencio, meio sincero, por não saber realmente que dissesse, meio calculado, para persuadil-o da minha consternação, murmurei que era melhor não ir, e falei-lhe na mãe. X... respondeu-me que a mãe approvava; era viuva de militar. Fazia esforços para sorrir, mas a cara continuava a ser de pedra. Os olhos buscavam desviar-se, e geralmente não fitavam bem nem longo. Não conversámos muito; elle ergueu-se, allegando que ia liquidar um negocio, e pediu-me que voltasse a vel-o. Á porta, disse-me com algum esforço: --Venha jantar um dia destes, antes da minha partida. --Sim. --Olhe, venha jantar amanhã. --Amanhã? --Ou hoje, se quizer. --Amanhã. Quiz deixar lembranças a Maria; era natural e necessario, mas faltou-me o animo. Embaixo arrependi-me de o não ter feito. Recapitulei a conversação, achei-me atado e incerto; elle pareceu-me, além de frio, sobranceiro. Vagamente, senti alguma cousa mais. O seu aperto de mão tanto á entrada, como á saida, não me déra a sensação do costume. Na noite desse dia, Barreto veiu ter commigo, atordoado com a noticia da manhã, e perguntando-me o que sabia; disse-lhe que nada. Contei-lhe a minha visita da manhã, a nossa conversação, sem as minhas suspeitas. --Póde ser engano, disse elle, depois de um instante. --Engano? --Raymunda contou-me hoje que falára a Maria, que esta negára tudo a principio, depois confessára, e recusára reatar as relações com você. --Já sei. --Sim, mas parece que da terceira vez foram presentidas e ouvidas por elle, que estava na saleta ao pé. Maria correu a contar a Raymunda que elle mudára inteiramente; esta dispoz-se a sondal-o, eu oppuz-me, até que li a noticia nos jornaes. Vi-o na rua, andando: não tinha aquelle gesto sereno de costume, mas o passo era forte. Fiquei aturdido com a noticia, que confirmava a minha impressão. Nem por isso deixei de ir lá jantar no dia seguinte. Barreto quiz ir tambem; percebi que era com o fim unico de estar commigo, e recusei. X... não dissera nada a Maria; achei-os na sala, e não me lembro de outra situação na vida em que me sentisse mais extranho a mim mesmo. Apertei-lhes a mão, sem olhar para ella. Creio que ella tambem desviou os olhos. Elle é que, com certeza, não nos observou; riscava um phosphoro e accendia um cigarro. Ao jantar falou o mais naturalmente que poude, ainda que frio. O rosto exprimia maior esforço que na vespera. Para explicar a possivel alteração, disse-me que embarcaria no fim da semana, e que, á proporção que a hora ia chegando, sentia difficuldade em sair. --Mas é só até fóra da barra; lá fóra torno a ser o que sou, e, na campanha, serei o que devo ser. Usava dessas palavras rigidas, alguma vez emphaticas. Notei que Maria trazia os olhos pisados; soube depois que chorára muito e tivera grande luta com elle, na vespera, para que não embarcasse. Só conhecêra a resolução pelos jornaes, prova de alguma cousa mais particular que o patriotismo. Não falou á mesa, e a dôr podia explicar o silencio, sem nenhuma outra causa de constrangimento pessoal. Ao contrario, X... procurava falar muito, contava os batalhões, os officiaes novos, as probabilidades de victoria, e referia anecdotas e boatos, sem curar de ligação. Ás vezes, queria rir; para o fim, disse que naturalmente voltaria general, mas ficou tão carrancudo depois deste gracejo, que não tentou outro. O jantar acabou frio; fumámos, elle ainda quiz falar da guerra, mas o assumpto estava exhausto. Antes de sair, convidei-o a ir jantar commigo. --Não posso; todos os meus dias estão tomados. --Venha almoçar. --Tambem não posso. Faço uma cousa; na volta do Paraguay, o terceiro dia é seu. Creio ainda hoje que o fim desta ultima phrase era indicar que os dous primeiros dias seriam da mãe e de Maria; assim, qualquer suspeita que eu tivesse dos motivos secretos da resolução, devia dissipar-se. Nem bastou isso; disse-me que escolhesse uma prenda em lembrança, um livro, por exemplo. Preferi o seu ultimo retrato, photographado a pedido da mãe, com a farda de capitão de voluntarios. Por dissimulação, quiz que assignasse; elle promptamente escreveu: «Ao seu leal amigo Simão de Castro offerece o capitão de voluntarios da patria X...» O marmore do rosto era mais duro, o olhar mais torvo; passou os dedos pelo bigode, com um gesto convulso, e despedimo-nos. No sabbado embarcou. Deixou a Maria os recursos necessarios para viver aqui, na Bahia, ou no Rio Grande do Sul; ella preferiu o Rio Grande, e partiu para lá, trez semanas depois, a esperar que elle voltasse da guerra. Não a pude ver antes; fechára-me a porta, como já me havia fechado o rosto e o coração. Antes de um anno, soube-se que elle morrêra em combate, no qual se houve com mais denodo que pericia. Ouvi contar que primeiro perdêra um braço, e que provavelmente a vergonha de ficar aleijado o fez atirar-se contra as armas inimigas, como quem queria acabar de vez. Esta versão podia ser exacta, porque elle tinha desvanecimento das bellas fórmas; mas a causa foi complexa. Tambem me contaram que Maria, voltando do Rio Grande, morreu em Curytiba; outros dizem que foi acabar em Montevidéo. A filha não passou dos quinze annos. Eu cá fiquei entre os meus remorsos e saudades; depois, só remorsos; agora admiração apenas, uma admiração particular, que não é grande senão por me fazer sentir pequeno. Sim, eu não era capaz de praticar o que elle praticou. Nem effectivamente conheci ninguem que se parecesse com X... E porque teimar nesta letra? Chamemol-o pelo nome que lhe deram na pia, Emilio, o meigo, o forte, o simples Emilio. Suje-se gordo! Uma noite, ha muitos annos, passeava eu com um amigo no terraço do theatro de S. Pedro de Alcantara. Era entre o segundo e o terceiro acto da peça _A sentença ou o tribunal do jury_. Só me ficou o titulo, e foi justamente o titulo que nos levou a falar da instituição e de um facto que nunca mais me esqueceu. Fui sempre contrario ao jury,--disse-me aquelle amigo,--não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condemnar alguem, e por aquelle preceito do Evangelho: «Não queiraes julgar para que não sejais julgados.» Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da rua dos Ourives, principio da ladeira da Conceição. Tal era o meu escrupulo que, salvo dous, absolvi todos os réos. Com effeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dous processos eram muito mal feitos. O primeiro réo que condemnei, era um moço limpo, accusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o facto, nem podia fazel-o, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguem, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem emphase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal pallidez que mettia pena; o promotor publico achou nessa mesma côr do gesto a confissão do crime. Ao contrario, o defensor mostrou que o abatimento e a pallidez significavam a lastima da innocencia calumniada. Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia odio, e não era. A defeza, além do talento do advogado, tinha a circumstancia de ser a estréa delle na tribuna. Parentes, collegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admiravel, e teria salvo o réo, se elle pudesse ser salvo, mas o crime mettia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dous annos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nelle! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do conselho, que era eu. Não digo o que se passou na sala secreta; além de ser secreto o que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse tambem calado, confesso. Contarei depressa; o terceiro acto não tarda. Um dos jurados do conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguem convencido do delicto e do delinquente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condemnação, ficou satisfeito, disse que seria um acto de fraqueza, ou cousa peior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votára pela negativa,--proferiu algumas palavras de defeza do moço. O ruivo,--chamava-se Lopes,--replicou com aborrecimento: --Como, senhor? Mas o crime do réo está mais que provado. --Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram commigo. --Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réo nega, mas o certo é que elle commetteu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miseria, duzentos mil reis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo! «Suje-se gordo!» Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a phrase, ao contrario; nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati á porta, abriram-nos, fui á mesa do juiz, dei as respostas do conselho e o réu saiu condemnado. O advogado appellou; se a sentença foi confirmada ou a appellação acceita, não sei; perdi o negocio de vista. Quando sai do tribunal, vim pensando na phrase do Lopes, e pareceu-me entendel-a. «Suje-se gordo!» era como se dissesse que o condemnado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornaes os nossos nomes, dei com o nome todo delle; não valia a pena procural-o, nem me ficou de cór. Assim são as paginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e accrescentava que as paginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a fórma dos versos. Em prosa disse-me elle, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao jury, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangelico; elle teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguem que se prezasse podia negar ao seu paiz. Fui e julguei tres processos. Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, accusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornaes deram sem grande minucia, e aliás eu lia pouco as noticias de crimes. O accusado appareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réos. Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu collega daquelle julgamento de annos antes. Não poderia reconhecel-o logo por estar agora magro, mas era a mesma côr dos cabellos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes. --Como se chama? perguntou o presidente. --Antonio do Carmo Ribeiro Lopes. Já me não lembravam os tres primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros signaes vieram confirmando as reminiscencias; não me tardou reconhecer a pessoa exacta daquelle dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circumstancias me impediram de acompanhar attentamente o interrogatorio, e muitas cousas me escaparam. Quando me dispuz a ouvil-o bem, estava quasi no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem anciedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca. Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de reis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orchestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquerito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma serie de circumstancias aggravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Tambem elle ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o tecto e as pessoas que o iam julgar; entre ellas eu. Quando olhou para mim, não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros. Todos esses gestos do homem serviram á accusação e á defeza, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrarios do outro accusado. O promotor achou nelles a revelação clara do cynismo, o advogado mostrou que só a innocencia e a certeza da absolvição podiam trazer aquella paz de espirito. Emquanto os dous oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar alli, no mesmo banco do outro, este homem que votára a condemnação delle, e naturalmente repeti commigo o texto evangelico: «Não queiraes julgar, para que não sejaes julgados.» Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a commetter algum desvio de dinheiro, mas podia, em occasião de raiva, matar alguem ou ser calumniado de desfalque. Aquelle que julgava outr'ora, era agora julgado tambem. Ao pé da palavra biblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: «Suje-se gordo!» Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até áquellas palavras: «Suje-se gordo!» Vi que não era um ladrão réles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a acção: «Suje-se gordo!» Queria dizer que o homem não se devia levar a um acto daquella especie sem a grossura da somma. A ninguem cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo! Idéas e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos á sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que votei affirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram commigo dous jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o accusado saiu para a rua. A differença da votação era tamanha que cheguei a duvidar commigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repellões de consciencia. Felizmente, se o Lopes não commetteu devéras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repellões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguem para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguem... Acabou a musica, vamos para as nossas cadeiras. Umas férias Vieram dizer ao mestre-escola que alguem lhe queria falar. --Quem é? --Diz que meu senhor não o conhece, respondeu o preto. --Que entre. Houve um movimento geral de cabeças na direcção da porta do corredor, por onde devia entrar a pessoa desconhecida. Eramos não sei quantos meninos na escola. Não tardou que apparecesse uma figura rude, tez queimada, cabellos compridos, sem signal de pente, a roupa amarrotada, não me lembra bem a côr nem a fazenda, mas provavelmente era brim pardo. Todos ficaram esperando o que vinha dizer o homem, eu mais que ninguem, porque elle era meu tio, roceiro, morador em Guaratiba. Chamava-se tio Zéca. Tio Zéca foi ao mestre e falou-lhe baixo. O mestre fêl-o sentar, olhou para mim, e creio que lhe perguntou alguma cousa, porque tio Zéca entrou a falar demorado, muito explicativo. O mestre insistiu, elle respondeu, até que o mestre, voltando-se para mim, disse alto: --Sr. José Martins, póde sair. A minha sensação de prazer foi tal que venceu a de espanto. Tinha dez annos apenas, gostava de folgar, não gostava de aprender. Um chamado de casa, o proprio tio, irmão de meu pae, que chegára na vespera de Guaratiba, era naturalmente alguma festa, passeio, qualquer cousa. Corri a buscar o chapéo, metti o livro de leitura no bolso e desci as escadas da escola, um sobradinho da rua do Senado. No corredor beijei a mão a tio Zéca. Na rua fui andando ao pé delle, amiudando os passos, e levantando a cara. Elle não me dizia nada, eu não me atrevia a nenhuma pergunta. Pouco depois chegavamos ao collegio de minha irmã Felicia; disse-me que esperasse, entrou, subiu, desceram, e fomos os tres caminho de casa. A minha alegria agora era maior. Certamente havia festa em casa, pois que iamos os dous, ella e eu; iamos na frente, trocando as nossas perguntas e conjecturas. Talvez annos de tio Zéca. Voltei a cara para elle; vinha com os olhos no chão, provavelmente para não cair. Fomos andando. Felicia era mais velha que eu um anno. Calçava sapato raso, atado ao peito do pé por duas fitas cruzadas, vindo acabar acima do tornozello com laço. Eu, botins de cordavão, já gastos. As calcinhas della pegavam com a fita dos sapatos, as minhas calças, largas, caíam sobre o peito do pé; eram de chita. Uma ou outra vez paravamos, ella para admirar as bonecas á porta dos armarinhos, eu para ver, á porta das vendas, algum papagaio que descia e subia pela corrente de ferro atada ao pé. Geralmente, era meu conhecido, mas papagaio não cança em tal edade. Tio Zéca é que nos tirava do espectaculo industrial ou natural. Andem, dizia elle em voz sumida. E nós andavamos, até que outra curiosidade nos fazia deter o passo. Entretanto, o principal era a festa que nos esperava em casa. --Não creio que sejam annos de tio Zéca, disse-me Felicia. --Porqué? --Parece meio triste. --Triste, não, parece carrancudo. --Ou carrancudo. Quem faz annos tem a cara alegre. --Então serão annos de meu padrinho... --Ou de minha madrinha... --Mas porque é que mamãe nos mandou para a escola? --Talvez não soubesse. --Ha de haver jantar grande... --Com doce... --Talvez dancemos. Fizemos um accordo: podia ser festa, sem anniversario de ninguem. A sorte grande, por exemplo. Occorreu-me tambem que podiam ser eleições. Meu padrinho era candidato a vereador; embora eu não soubesse bem o que era candidatura nem vereação, tanto ouvira falar em victoria proxima que a achei certa e ganha. Não sabia que a eleição era ao domingo, e o dia era sexta-feira. Imaginei bandas de musica, vivas e palmas, e nós, meninos, pulando, rindo, comendo cocadas. Talvez houvesse espectaculo á noite; fiquei meio tonto. Tinha ido uma vez ao theatro, e voltei dormindo, mas no dia seguinte estava tão contente que morria por lá tornar, posto não houvesse entendido nada do que ouvira. Vira muita cousa, isso sim, cadeiras ricas, thronos, lanças compridas, scenas que mudavam á vista, passando de uma sala a um bosque, e do bosque a uma rua. Depois, os personagens, todos principes. Era assim que chamavamos aos que vestiam calção de seda, sapato de fivella ou botas, espada, capa de velludo, gorra com pluma. Tambem houve bailado. As bailarinas e os bailarinos falavam com os pés e as mãos, trocando de posição e um sorriso constante na boca. Depois os gritos do publico e as palmas... Já duas vezes escrevi palmas; é que as conhecia bem. Felicia, a quem communiquei a possibilidade do espectaculo, não me pareceu gostar muito, mas tambem não recusou nada. Iria ao theatro. E quem sabe se não seria em casa, theatrinho de bonecos? Iamos nessas conjecturas, quando tio Zéca nos disse que esperassemos; tinha parado a conversar com um sujeito. Parámos, á espera. A idéa da festa, qualquer que fosse, continuou a agitar-nos, mais a mim que a ella. Imaginei trinta mil cousas, sem acabar nenhuma, tão precipitadas vinham, e tão confusas que não as distinguia; póde ser até que se repetissem. Felicia chamou a minha attenção para dous moleques de carapuça encarnada, que passavam carregando cannas,--o que nos lembrou as noites de Santo Antonio e S. João, já lá idas. Então falei-lhe das fogueiras do nosso quintal, das bichas que queimámos, das rodinhas, das pistolas e das danças com outros meninos. Se houvesse agora a mesma cousa... Ah! lembrou-me que era occasião de deitar á fogueira o livro da escola, e o della tambem, com os pontos de costura que estava aprendendo. --Isso não, acudiu Felicia. --Eu queimava o meu livro. --Papae comprava outro. --Emquanto comprasse, eu ficava brincando em casa; aprender é muito aborrecido. Nisto estavamos, quando vimos tio Zéca e o desconhecido ao pé de nós. O desconhecido pegou-nos nos queixos e levantou-nos a cara para elle, fitou-nos com seriedade, deixou-nos e despediu-se. --Nove horas? Lá estarei, disse elle. --Vamos, disse-nos tio Zéca. Quiz perguntar-lhe quem era aquelle homem, e até me pareceu conhecel-o vagamente. Felicia tambem. Nenhum de nós acertava com a pessoa; mas a promessa de lá estar ás nove horas dominou o resto. Era festa, algum baile, comquanto ás nove horas costumassemos ir para a cama. Naturalmente, por excepção, estariamos accordados. Como chegassemos a um rego de lama, peguei da mão de Felicia, e transpuzemol-o de um salto, tão violento que quasi me caiu o livro. Olhei para tio Zéca, a ver o effeito do gesto; viu-o abanar a cabeça com reprovação. Ri, ella sorriu, e fomos pela calçada adeante. Era o dia dos desconhecidos. Desta vez estavam em burros, e um dos dous era mulher. Vinham da roça. Tio Zéca foi ter com elles ao meio da rua, depois de dizer que esperassemos. Os animaes pararam, creio que de si mesmos, por tambem conhecerem a tio Zéca, idéa que Felicia reprovou com o gesto, e que eu defendi rindo. Teria apenas meia convicção; tudo era folgar. Fosse como fosse, esperámos os dous, examinando o casal de roceiros. Eram ambos magros, a mulher mais que o marido, e tambem mais moça; elle tinha os cabellos grisalhos. Não ouvimos o que disseram, elle e tio Zéca; vimol-o, sim, o marido olhar para nós com ar de curiosidade, e falar á mulher, que tambem nos deitou os olhos, agora com pena ou cousa parecida. Emfim apartaram-se, tio Zéca veiu ter comnosco e enfiámos para casa. A casa ficava na rua proxima, perto da esquina. Ao dobrarmos esta, vimos os portaes da casa forrados de preto,--o que nos encheu de espanto. Instinctivamente parámos e voltámos a cabeça para tio Zéca. Este veiu a nós, deu a mão a cada um e ia a dizer alguma palavra que lhe ficou na garganta; andou, levando-nos comsigo. Quando chegámos, as portas estavam meio cerradas. Não sei se lhes disse que era um armarinho. Na rua, curiosos. Nas janellas fronteiras e lateraes, cabeças agglomeradas. Houve certo reboliço quando chegámos. É natural que eu tivesse a boca aberta, como Felicia. Tio Zéca empurrou uma das meias portas, entrámos os tres, elle tornou a cerral-a, metteu-se pelo corredor e fomos á sala de jantar e á alcova. Dentro, ao pé da cama, estava minha mãe com a cabeça entre as mãos. Sabendo da nossa chegada, ergueu-se de salto, veiu abraçar-nos entre lagrimas, bradando: --Meus filhos, vosso pae morreu! A commoção foi grande, por mais que o confuso e o vago entorpecessem a consciencia da noticia. Não tive forças para andar, e teria medo de o fazer. Morto como? morto porque? Estas duas perguntas, se as metto aqui, é para dar seguimento á acção; naquelle momento não perguntei nada a mim nem a ninguem. Ouvia as palavras de minha mãe, que se repetiam em mim, e os seus soluços que eram grandes. Ella pegou em nós e arrastou-nos para a cama, onde jazia o cadaver do marido; e fez-nos beijar-lhe a mão. Tão longe estava eu daquillo que, apezar de tudo, não entendêra nada a principio; a tristeza e o silencio das pessoas que rodeavam a cama, ajudaram a explicar que meu pae morrêra devéras. Não se tratava de um dia santo, com a sua folga e recreio, não era festa, não eram as horas breves ou longas, para a gente desfiar em casa, arredada dos castigos da escola. Que essa queda de um sonho tão bonito fizesse crescer a minha dôr de filho não é cousa que possa affirmar ou negar; melhor é calar. O pae alli estava defunto, sem pulos, nem danças, nem risadas, nem bandas de musica, cousas todas tambem defuntas. Se me houvessem dito á saida da escola porque é que me iam lá buscar, é claro que a alegria não houvera penetrado o coração, donde era agora expellida a punhadas. O enterro foi no dia seguinte ás nove horas da manhã, e provavelmente lá estava aquelle amigo de tio Zeca que se despediu na rua, com a promessa de ir ás nove horas. Não vi as cerimonias; alguns vultos, poucos, vestidos de preto, lembra-me que vi. Meu padrinho, dono de um trapiche, lá estava, e a mulher tambem, que me levou a uma alcova dos fundos para me mostrar gravuras. Na occasião da saida, ouvi os gritos de minha mãe, o rumor dos passos, algumas palavras abafadas de pessoas que pegavam nas alças do caixão, creio eu: «--vire de lado,--mais á esquerda,--assim,--segure bem...» Depois, ao longe, o coche andando e as seges atraz delle... Lá iam meu pae e as férias! Um dia de folga sem folguedo! Não, não foi um dia, mas oito, oito dias de nojo, durante os quaes alguma vez me lembrei do collegio. Minha mãe chorava, cosendo o luto, entre duas visitas de pesames. Eu tambem chorava; não via meu pae ás horas do costume, não lhe ouvia as palavras á mesa ou ao balcão, nem as caricias que dizia aos passaros. Que elle era muito amigo de passaros, e tinha tres ou quatro, em gaiolas. Minha mãe vivia calada. Quasi que só falava ás pessoas de fóra. Foi assim que eu soube que meu pae morrêra de apoplexia. Ouvi esta noticia muitas vezes; as visitas perguntavam pela causa da morte, e ella referia tudo, a hora, o gesto, a occasião: tinha ido beber agua, e enchia um copo, á janella da área. Tudo decorei, á força de ouvil-o contar. Nem por isso os meninos do collegio deixavam de vir espiar para dentro da minha memoria. Um delles chegou a perguntar-me quando é que eu voltaria. --Sabbado, meu filho, disse minha mãe, quando lhe repeti a pergunta imaginada; a missa é sexta-feira. Talvez seja melhor voltar na segunda. --Antes sabbado, emendei. --Pois sim, concordou. Não sorria; se pudesse, sorriria de gosto ao ver que eu queria voltar mais cedo á escola. Mas, sabendo que eu não gostava de aprender, como entenderia a emenda? Provavelmente, deu-lhe algum sentido superior, conselho do ceu ou do marido. Em verdade, eu não folgava, se lerdes isto com o sentido de rir. Com o de descançar tambem não cabe, porque minha mãe fazia-me estudar, e, tanto como o estudo, aborrecia-me a attitude. Obrigado a estar sentado, com o livro nas mãos, a um canto ou á mesa, dava ao diabo o livro, a mesa e a cadeira. Usava um recurso que recommendo aos preguiçosos: deixava os olhos na pagina e abria a porta á imaginação. Corria a apanhar as flechas dos foguetes, a ouvir os realejos, a bailar com meninas, a cantar, a rir, a espancar de mentira ou de brincadeira, como fôr mais claro. Uma vez, como désse por mim a andar na sala sem ler, minha mãe reprehendeu-me, e eu respondi que estava pensando em meu pae. A explicação fel-a chorar, e, para dizer tudo, não era totalmente mentira; tinha-me lembrado o ultimo presentinho que elle me déra, e entrei a vel-o com o mimo na mão. Felicia vivia tão triste como eu, mas confesso a minha verdade, a causa principal não era a mesma. Gostava de brincar, mas não sentia a ausencia do brinco, não se lhe dava de acompanhar a mãe, coser com ella, e uma vez fui achal-a a enxugar-lhe os olhos. Meio vexado, pensei em imital-a, e metti a mão no bolso para tirar o lenço. A mão entrou sem ternura, e, não achando lenço, saiu sem pesar. Creio que ao gesto não faltava só originalidade, mas sinceridade tambem. Não me censurem. Sincero fui longos dias calados e reclusos. Quiz uma vez ir para o armarinho, que se abriu depois do enterro, onde o caixeiro continuou a servir. Conversaria com este, assistiria á venda de linhas e agulhas, á medição de fitas, iria á porta, á calçada, á esquina da rua... Minha mãe suffocou este sonho pouco depois delle nascer. Mal chegára ao balcão, mandou-me buscar pela escrava; lá fui para o interior da casa e para o estudo. Arrepelei-me, apertei os dedos á guiza de quem quer dar murro; não me lembra se chorei de raiva. O livro lembrou-me a escola, e a imagem da escola consolou-me. Já então lhe tinha grandes saudades. Via de longe as caras dos meninos, os nossos gestos de troça nos bancos, e os saltos á saida. Senti cair-me na cara uma daquellas bolinhas de papel com que nos espertavamos uns aos outros, e fiz a minha e atirei-a ao meu supposto espertador. A bolinha, como acontecia ás vezes, foi cair na cabeça de terceiro, que se desforrou depressa. Alguns, mais timidos, limitavam-se a fazer caretas. Não era folguedo franco, mas já me valia por elle. Aquelle degredo que eu deixei tão alegremente com tio Zeca, parecia-me agora um céo remoto, e tinha medo de o perder. Nenhuma festa em casa, poucas palavras, raro movimento. Foi por esse tempo que eu desenhei a lapis maior numero de gatos nas margens do livro de leitura; gatos e porcos. Não alegrava, mas distrahia. A missa do setimo dia restituiu-me á rua; no sabbado não fui á escola, fui á casa de meu padrinho, onde pude falar um pouco mais, e no domingo estive á porta da loja. Não era alegria completa. A total alegria foi segunda-feira, na escola. Entrei vestido de preto, fui mirado com curiosidade, mas tão outro ao pé dos meus condiscipulos, que me esqueceram as férias sem gosto, e achei uma grande alegria sem férias. Evolução Chamo-me Ignacio; elle, Benedicto. Não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento de compostura, que toda a gente discreta apreciará. Ignacio basta. Contentem-se com Benedicto. Não é muito, mas é alguma cousa, e está com a philosophia de Julieta: «Que valem nomes? perguntava ella ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmo cheiro.» Vamos ao cheiro do Benedicto. E desde logo assentemos que elle era o menos Romeo d'este mundo. Tinha quarenta e cinco annos, quando o conheci; não declaro em que tempo, porque tudo n'este conto ha de ser mysterioso e truncado. Quarenta e cinco annos, e muitos cabellos pretos; para os que o não eram, usava um processo chimico, tão efficaz que não se lhe distinguiam os pretos dos outros--salvo ao levantar da cama; mas ao levantar da cama não apparecia a ninguem. Tudo mais era natural, pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relogio e bengala. O proprio alfinete de diamante, que trazia na gravata, um dos mais lindos que tenho visto, era natural e legitimo; custou-lhe bom dinheiro; eu mesmo o vi comprar na casa do... lá me ia escapando o nome do joalheiro;--fiquemos na rua do Ouvidor. Moralmente, era elle mesmo. Ninguem muda de caracter, e o do Benedicto era bom,--ou para melhor dizer, pacato. Mas, intellectualmente, é que elle era menos original. Podemos comparal-o a uma hospedaria bem afreguezada, aonde iam ter idéas de toda parte e de toda sorte, que se sentavam á mesa com a familia da casa. Ás vezes, acontecia acharem-se alli duas pessoas inimigas, ou simplesmente antipathicas; ninguem brigava, o dono da casa impunha aos hospedes a indulgencia reciproca. Era assim que elle conseguia ajustar uma especie de atheismo vago com duas irmandades que fundou, não sei se na Gavea, na Tijuca ou no Engenho-Velho. Usava assim, promiscuamente, a devoção, a irreligião e as meias de seda. Nunca lhe vi as meias, note-se; mas elle não tinha segredos para os amigos. Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tinhamos deixado o trem e entrado na diligencia que nos ia levar da estação á cidade. Trocámos algumas palavras, e não tardou conversarmos francamente, ao sabor das circumstancias que nos impunham a convivencia, antes mesmo de saber quem eramos. Naturalmente, o primeiro objecto foi o progresso que nos traziam as estradas de ferro. Benedicto lembrava-se do tempo em que toda a jornada era feita ás costas de burro. Contámos então algumas anecdotas, falámos de alguns nomes, e ficámos de accordo em que as estradas de ferro eram uma condição de progresso do paiz. Quem nunca viajou não sabe o valor que tem uma d'essas banalidades graves e solidas para dissipar os tedios do caminho. O espirito areja-se, os proprios musculos recebem uma communicação agradavel, o sangue não salta, fica-se em paz com Deus e os homens. --Não serão os nossos filhos que verão todo este paiz cortado de estradas, disse elle. --Não, de certo. O senhor tem filhos? --Nenhum. --Nem eu. Não será ainda em cincoenta annos; e, entretanto, é a nossa primeira necessidade. Eu comparo o Brazil a uma creança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro. --Bonita idéa! exclamou Benedicto faiscando-lhe os olhos. --Importa-me pouco que seja bonita, comtanto que seja justa. --Bonita e justa, redarguiu elle com amabilidade. Sim, senhor, tem razão:--o Brazil está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro. Chegámos a Vassouras; eu fui para a casa do juiz municipal, camarada antigo; elle demorou-se um dia e seguiu para o interior. Oito dias depois voltei ao Rio de Janeiro, mas sósinho. Uma semana mais tarde, voltou elle; encontrámo-nos no theatro, conversámos muito e trocámos noticias; Benedicto acabou convidando-me a ir almoçar com elle no dia seguinte. Fui; deu-me um almoço de principe, bons charutos e palestra animada. Notei que a conversa d'elle fazia mais effeito no meio da viagem--arejando o espirito e deixando a gente em paz com Deus e os homens; mas devo dizer que o almoço póde ter prejudicado o resto. Realmente era magnifico; e seria impertinencia historica pôr a mesa de Lucullo na casa de Platão. Entre o café e o cognac, disse-me elle, apoiando o cotovello na borda da mesa, e olhando para o charuto que ardia: --Na minha viagem agora, achei occasião de ver como o senhor tem razão com aquella idéa do Brazil engatinhando. --Ah? --Sim, senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligencia de Vassouras. Só começaremos a andar quando tivermos muitas estradas de ferro. Não imagina como isso é verdade. E referiu muita cousa, observações relativas aos costumes do interior, difficuldades da vida, atrazo, concordando, porém, nos bons sentimentos da população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o governo não correspondia ás necessidades da patria; parecia até interessado em mantel-a atraz das outras nações americanas. Mas era indispensavel que nos persuadissemos de que os principios são tudo e os homens nada. Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos; e _abyssus abyssum invocat_. Depois foi mostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas com apuro. Mostrou-me as collecções de quadros, de moedas, de livros antigos, de sellos, de armas; tinha espadas e floretes, mas confessou que não sabia esgrimir. Entre os quadros vi um lindo retrato de mulher; perguntei-lhe quem era. Benedicto sorriu. --Não irei adeante, disse eu sorrindo tambem. --Não, não ha que negar, acudiu elle; foi uma moça de quem gostei muito. Bonita, não? Não imagina a belleza que era. Os labios eram mesmo de carmim e as faces de rosa; tinha os olhos negros, côr da noite. E que dentes! verdadeiras perolas. Um mimo da natureza. Em seguida, passámos ao gabinete. Era vasto, elegante, um pouco trivial, mas não lhe faltava nada. Tinha duas estantes, cheias de livros muito bem encadernados, um mappa-mundi, dous mappas do Brazil. A secretaria era de ebano, obra fina; sobre ella, casualmente aberto, um almanak de Laemmert. O tinteiro era de crystal,--«crystal de rocha», disse-me elle, explicando o tinteiro, como explicava as outras cousas. Na sala contigua havia um orgão. Tocava orgão, e gostava muito de musica, falou d'ella com enthusiasmo, citando as operas, os trechos melhores, e noticiou-me que, em pequeno, começára a aprender flauta; abandonou-a logo,--o que foi pena, concluiu, porque é, na verdade, um instrumento muito saudoso. Mostrou-me ainda outras salas, fomos ao jardim, que era esplendido, tanto ajudava a arte á natureza, e tanto a natureza coroava a arte. Em rosas, por exemplo, (não ha negar, disse-me elle, que é a rainha das flôres) em rosas, tinha-as de toda casta e de todas as regiões. Saí encantado. Encontrámo-nos algumas vezes, na rua, no theatro, em casa de amigos communs, tive occasião de aprecial-o. Quatro mezes depois fui á Europa, negocio que me obrigava á ausencia de um anno; elle ficou cuidando da eleição; queria ser deputado. Fui eu mesmo que o induzi a isso, sem a menor intenção politica, mas com o unico fim de lhe ser agradavel; mal comparando, era como se lhe elogiasse o córte do collete. Elle pegou da idéa, e apresentou-se. Um dia, atravessando uma rua de Pariz, dei subitamente com o Benedicto. --Que é isto? exclamei. --Perdi a eleição, disse elle, e vim passear á Europa. Não me deixou mais; viajámos juntos o resto do tempo. Confessou-me que a perda da eleição não lhe tirára a idéa de entrar no parlamento. Ao contrario, incitára-o mais. Falou-me de um grande plano. --Quero vel-o ministro, disse-lhe. Benedicto não contava com esta palavra, o rosto illuminou-se-lhe; mas disfarçou depressa. --Não digo isso, respondeu. Quando, porém, seja ministro, creia que serei tão sómente ministro industrial. Estamos fartos de partidos; precisamos desenvolver as forças vivas do paiz, os seus grandes recursos. Lembra-se do que _nós diziamos_ na diligencia de Vassouras? O Brazil está engatinhando; só andará com estradas de ferro. --Tem razão, concordei um pouco espantado. E porque é que eu mesmo vim á Europa? Vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo as cousas arranjadas em Londres. --Sim? --Perfeitamente. Mostrei-lhe os papeis; elle viu-os deslumbrado. Como eu tivesse então recolhido alguns apontamentos, dados estatisticos, folhetos, relatorios, copias de contractos, tudo referente a materias industriaes, e lh'os mostrasse, Benedicto declarou-me que ia tambem colligir algumas cousas d'aquellas. E, na verdade, vi-o andar por ministerios, bancos, associações, pedindo muitas notas e opusculos, que amontoava nas malas; mas o ardor com que o fez, se foi intenso, foi curto; era de emprestimo. Benedicto recolheu com muito mais gosto os anexins politicos e fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um vasto arsenal d'elles. Nas conversas commigo repetia-os muita vez, á laia de experiencia; achava n'elles grande prestigio e valor inestimavel. Muitos eram de tradição ingleza, e elle os preferia aos outros, como trazendo em si um pouco da Camara dos Communs. Saboreava-os tanto que eu não sei se elle acceitaria jámais a liberdade real sem aquelle apparelho verbal; creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas fórmas curtas, tão commodas, algumas lindas, outras sonoras, todas axiomaticas, que não forçam a reflexão, preenchem os vasios, e deixam a gente em paz com Deus e os homens. Regressámos juntos; mas eu fiquei em Pernambuco, e tornei mais tarde a Londres, d'onde vim ao Rio de Janeiro, um anno depois. Já então Benedicto era deputado. Fui visital-o; achei-o preparando o discurso de estréa. Mostrou-me alguns apontamentos, trechos de relatorios, livros de economia politica, alguns com paginas marcadas, por meio de tiras de papel rubricadas assim:--_Cambio_, _Taxa das terras_, _Questão dos cereaes em Inglaterra_, _Opinião de Stuart Mill_, _Erro de Thiers sobre caminhos de ferro_, etc. Era sincero, minucioso e callido. Falava-me d'aquellas cousas, como se acabasse de as descobrir, expondo-me tudo, ab ovo; tinha a peito mostrar aos homens praticos da Camara que tambem elle era pratico. Em seguida, perguntou-me pela empreza; disse-lhe o que havia. --Dentro de dous annos conto inaugurar o primeiro trecho da estrada. --E os capitalistas inglezes? --Que têm? --Estão contentes, esperançados? --Muito; não imagina. Contei-lhe algumas particularidades technicas, que elle ouviu distrahidamente,--ou porque a minha narração fosse em extremo complicada, ou por outro motivo. Quando acabei, disse-me que estimava ver-me entregue ao movimento industrial; era d'elle que precisavamos, e a este proposito fez-me o favor de ler o exordio do discurso que devia proferir d'alli a dias. --Está ainda em borrão, explicou-me; mas as idéas capitaes ficam. E começou: «No meio da agitação crescente dos espiritos, do alarido partidario que encobre as vozes dos legitimos interesses, permitti que alguem faça ouvir uma supplica da nação. Senhores, é tempo de cuidar, exclusivamente,--notae que digo exclusivamente,--dos melhoramentos materiaes do paiz. Não desconheço o que se me póde replicar; dir-me-heis que uma nação não se compõe só de estomago para digerir, mas de cabeça para pensar e de coração para sentir. Respondo-vos que tudo isso não valerá nada ou pouco, se ella não tiver pernas para caminhar; e aqui repetirei o que, ha alguns annos, _dizia eu_ a um amigo, em viagem pelo interior: o Brazil é uma creança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro...» Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo. Mais que pensativo, fiquei assombrado, desvairado deante do abysmo que a psychologia rasgava aos meus pés. Este homem é sincero, pensei commigo, está persuadido do que escreveu. E fui por ahi abaixo até ver se achava a explicação dos tramites por que passou aquella recordação da diligencia de Vassouras. Achei (perdôem-me se ha n'isto infatuação), achei alli mais um effeito da lei da evolução, tal como a definiu Spencer,--Spencer ou Benedicto, um d'elles. Pylades e Orestes Quintanilha engendrou Gonçalves. Tal era a impressão que davam os dous juntos, não que se parecessem. Ao contrario, Quintanilha tinha o rosto redondo, Gonçalves comprido, o primeiro era baixo e moreno, o segundo alto e claro, e a expressão total divergia inteiramente. Accresce que eram quasi da mesma edade. A idéa da paternidade nascia das maneiras com que o primeiro tratava o segundo; um pae não se desfaria mais em carinhos, cautellas e pensamentos. Tinham estudado juntos, morado juntos, e eram bachareis do mesmo anno. Quintanilha não seguiu advocacia nem magistratura, metteu-se na politica; mas, eleito deputado provincial em 187... cumpriu o prazo da legislatura e abandonou a carreira. Herdára os bens de um tio, que lhe davam de renda cerca de trinta contos de réis. Veiu para o seu Gonçalves, que advogava no Rio de Janeiro. Posto que abastado, moço, amigo do seu unico amigo, não se póde dizer que Quintanilha fosse inteiramente feliz, como vaes ver. Ponho de lado o desgosto que lhe trouxe a herança com o odio dos parentes; tal odio foi que elle esteve prestes a abrir mão d'ella, e não o fez porque o amigo Gonçalves, que lhe dava idéas e conselhos, o convenceu de que similhante acto seria rematada loucura. --Que culpa tem você que merecesse mais a seu tio que os outros parentes? Não foi você que fez o testamento nem andou a bajular o defunto, como os outros. Se elle deixou tudo a você, é que o achou melhor que elles; fique-se com a fortuna, que é a vontade do morto, e não seja tolo. Quintanilha acabou concordando. Dos parentes alguns buscaram reconciliar-se com elle, mas o amigo mostrou-lhe a intenção recondita dos taes, e Quintanilha não lhes abriu a porta. Um d'esses, ao vê-lo ligado com o antigo companheiro de estudos, bradava por toda a parte: -- Ahi está, deixa os parentes para se metter com extranhos; ha de ver o fim que leva. Ao saber d'isto, Quintanilha correu a contal-o a Gonçalves, indignado. Gonçalves sorriu, chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o animo; não valia a pena irritar-se por ditinhos. -- Uma só cousa desejo, continuou, é que nos separemos, para que se não diga... --Que se não diga o quê? É boa! Tinha que vêr, se eu passava a escolher as minhas amizades conforme o capricho de alguns peraltas sem vergonha! -- Não fale assim, Quintanilha. Você é grosseiro com seus parentes. -- Parentes do diabo que os leve! Pois eu hei de viver com as pessoas que me fôrem designadas por meia duzia de velhacos que o que querem é comer-me o dinheiro? Não, Gonçalves; tudo o que você quizer, menos isso. Quem escolhe os meus amigos sou eu, é o meu coração. Ou você está... está aborrecido de mim? -- Eu? Tinha graça. -- Pois então? -- Mas é... -- Não é tal! A vida que viviam os dous, era a mais unida d'este mundo. Quintanilha accordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com elle. Jantavam juntos, faziam alguma visita, passeavam ou acabavam a noite no theatro. Se Gonçalves tinha algum trabalho que fazer á noite, Quintanilha ia ajudal-o como obrigação; dava busca aos textos de lei, marcava-os, copiava-os, carregava os livros. Gonçalves esquecia com facilidade, ora um recado, ora uma carta, sapatos, charutos, papeis. Quintanilha suppria-lhe a memoria. Ás vezes, na rua do Ouvidor, vendo passar as moças, Gonçalves lembrava-se de uns autos que deixára no escriptorio. Quintanilha voava a buscal-os e tornava com elles, tão contente que não se podia saber se eram autos, se a sorte grande; procurava-o anciosamente com os olhos, corria, sorria, morria de fadiga. -- São estes? -- São; deixa ver, são estes mesmos. Dá cá. -- Deixa, eu levo. A principio, Gonçalves suspirava: --Que massada que dei a você! Quintanilha ria do suspiro com tão bom humor que o outro, para não o molestar, não se accusou de mais nada; concordou em receber os obsequios. Com o tempo, os obsequios ficaram sendo puro officio. Gonçalves dizia ao outro: «Você hoje ha de lembrar-me isto e aquillo.» E o outro decorava as recommendações, ou escrevia-as, se eram muitas. Algumas dependiam de horas; era de ver como o bom Quintanilha suspirava afflicto, á espera que chegasse tal ou tal hora para ter o gosto de lembrar os negocios ao amigo. E levava-lhe as cartas e papeis, ia buscar as respostas, procurar as pessoas, esperal-as na estrada de ferro, fazia viagens ao interior. De si mesmo descobria-lhe bons charutos, bons jantares, bons espectaculos. Gonçalves já não tinha liberdade de falar de um livro novo, ou sómente caro, que não achasse um exemplar em casa. -- Você é um perdulario, dizia-lhe em tom reprehensivo. -- Então gastar com letras e sciencias é botar fóra? É boa! concluia o outro. No fim do anno quiz obrigal-o a passar fóra as férias. Gonçalves acabou acceitando, e o prazer que lhe deu com isto foi enorme. Subiram a Petropolis. Na volta, serra abaixo, como falassem de pintura, Quintanilha advertiu que não tinham ainda uma tela com o retrato dos dous, e mandou fazel-a. Quando a levou ao amigo, este não poude deixar de lhe dizer que não prestava para nada. Quintanilha ficou sem voz. -- É uma porcaria, insistiu Gonçalves. -- Pois o pintor disse-me... -- Você não entende de pintura, Quintanilha, e o pintor aproveitou a occasião para metter a espiga. Pois isto é cara decente? Eu tenho este braço torto? -- Que ladrão! -- Não, elle não tem culpa, fez o seu negocio; você é que não tem o sentimento da arte, nem pratica, e espichou-se redondamente. A intenção foi boa, creio... -- Sim, a intenção foi boa. -- E aposto que já pagou? -- Já. Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou rindo. Quintanilha, vexado e aborrecido, olhava para a tela, até que saccou de um canivete e rasgou-a de alto a baixo. Com se não bastasse esse gesto de vingança, devolveu a pintura ao artista com um bilhete em que lhe transmittiu alguns dos nomes recebidos e mais o de asno. A vida tem muitas de taes pagas. Demais, uma letra de Gonçalves que se venceu d'alli a dias e que este não poude pagar, veiu trazer ao espirito de Quintanilha uma diversão. Quasi brigaram; a idéa de Gonçalves era reformar a letra; Quintanilha, que era o endossante, entendia não valer a pena pedir o favor por tão escassa quantia (um conto e quinhentos), elle emprestaria o valor da letra, e o outro que lhe pagasse, quando pudesse. Gonçalves não consentiu e fez-se a reforma. Quando, ao fim d'ella, a situação se repetiu, o mais que este admittiu foi acceitar uma letra de Quintanilha, com o mesmo juro. -- Você não vê que me envergonha, Gonçalves? Pois eu hei de receber juro de você...? -- Ou recebe, ou não fazemos nada. -- Mas, meu querido... Teve que concordar. A união dos dous era tal que uma senhora chamava-lhes os «casadinhos de fresco», e um letrado, Pylades e Orestes. Elles riam, naturalmente, mas o riso de Quintanilha trazia alguma cousa parecida com lagrimas: era, nos olhos, uma ternura humida. Outra differença é que o sentimento de Quintanilha tinha uma nota de enthusiasmo, que absolutamente faltava ao de Gonçalves; mas, enthusiasmo não se inventa. É claro que o segundo era mais capaz de inspiral-o ao primeiro do que este a elle. Em verdade, Quintanilha era mui sensivel a qualquer distincção; uma palavra, um olhar bastava a accender-lhe o cerebro. Uma pancadinha no hombro ou no ventre, com o fim de approval-o ou só accentuar a intimidade, era para derretel-o de prazer. Contava o gesto e as circumstancias durante dous e tres dias. Não era raro vel-o irritar-se, teimar, descompôr os outros. Tambem era commum vel-o rir-se; alguma vez o riso era universal, entornava-se-lhe da bocca, dos olhos, da testa, dos braços, das pernas, todo elle era um riso unico. Sem ter paixões, estava longe de ser apathico. A letra saccada contra Gonçalves tinha o prazo de seis mezes. No dia do vencimento, não só não pensou em cobral-a, mas resolveu ir jantar a algum arrabalde para não ver o amigo, se fosse convidado á reforma. Gonçalves destruiu todo esse plano; logo cedo, foi levar-lhe o dinheiro. O primeiro gesto de Quintanilha foi recusal-o, dizendo-lhe que o guardasse, podia precisar d'elle; o devedor teimou em pagar e pagou. Quintanilha acompanhava os actos de Gonçalves; via a constancia do seu trabalho, o zelo que elle punha na defesa das demandas, e vivia cheio de admiração. Realmente, não era grande advogado, mas na medida das suas habilitações, era distincto. -- Você porque não se casa? perguntou-lhe um dia; um advogado precisa casar. Gonçalves respondia rindo. Tinha uma tia, unica parenta, a quem elle queria muito, e que lhe morreu, quando elles iam em trinta annos. Dias depois, dizia ao amigo: -- Agora só me resta você. Quintanilha sentiu os olhos molhados, e não achou que lhe respondesse. Quando se lembrou de dizer que «iria até á morte» era tarde. Redobrou então de carinhos, e um dia accordou com a idéa de fazer testamento. Sem revelar nada ao outro, nomeou-o testamenteiro e herdeiro universal. -- Guarde-me este papel, Gonçalves, disse-lhe entregando o testamento. Sinto-me forte, mas a morte é facil, e não quero confiar a qualquer pessoa as minhas ultimas vontades. Foi por esse tempo que succedeu um caso que vou contar. Quintanilha tinha uma prima-segunda, Camilla, moça de vinte e dous annos, modesta, educada e bonita. Não era rica; o pae, João Bastos, era guarda-livros de uma casa de café. Haviam brigado por occasião da herança; mas, Quintanilha foi ao enterro da mulher de João Bastos, e este acto de piedade novamente os ligou. João Bastos esqueceu facilmente alguns nomes crús que dissera do primo, chamou-lhe outros nomes doces, e pediu-lhe que fosse jantar com elle. Quintanilha foi e tornou a ir. Ouviu ao primo o elogio da finada mulher; n'uma occasião em que Camilla os deixou sós, João Bastos louvou as raras prendas da filha, que affirmava haver recebido integralmente a herança moral da mãe. -- Não direi isto nunca á pequena, nem você lhe diga nada. É modesta, e, se começarmos a elogial-a, póde perder-se. Assim, por exemplo, nunca lhe direi que é tão bonita como foi a mãe, quando tinha a edade d'ella; póde ficar vaidosa. Mas a verdade é que é mais, não lhe parece? Tem ainda o talento de tocar piano, que a mãe não possuia. Quando Camilla voltou á sala de jantar, Quintanilha sentiu vontade de lhe descobrir tudo, conteve-se e piscou o olho ao primo. Quiz ouvil-a ao piano; ella respondeu, cheia de melancolia: -- Ainda não, ha apenas um mez que mamãe falleceu, deixe passar mais tempo. Demais, eu toco mal. -- Mal? -- Muito mal. Quintanilha tornou a piscar o olho ao primo, e ponderou á moça que a prova de tocar bem ou mal só se dava ao piano. Quanto ao prazo, era certo que apenas passára um mez; todavia era tambem certo que a musica era uma distracção natural e elevada. Além d'isso, bastava tocar um pedaço triste. João Bastos approvou este modo de ver e lembrou uma composição elegiaca. Camilla abanou a cabeça. -- Não, não, sempre é tocar piano; os vizinhos são capazes de inventar que eu toquei uma polka. Quintanilha achou graça e riu. Depois concordou e esperou que os tres mezes fossem passados. Até lá, viu a prima algumas vezes, sendo as tres ultimas visitas mais proximas e longas. Emfim, poude ouvil-a tocar piano, e gostou. O pae confessou que, ao principio, não gostava muito d'aquellas musicas allemãs; com o tempo e o costume achou-lhes sabor. Chamava á filha «a minha allemãsinha», appellido que foi adoptado por Quintanilha, apenas modificado para o plural: «a nossa allemãsinha». Pronomes possessivos dão intimidade; dentro em pouco, ella existia entre os tres,--ou quatro, se contarmos Gonçalves, que alli foi apresentado pelo amigo; -- mas fiquemos nos tres. Que elle é cousa já farejada por ti, leitor sagaz. Quintanilha acabou gostando da moça. Como não, se Camilla tinha uns longos olhos mortaes? Não é que os pousasse muita vez nelle, e, se o fazia, era com tal ou qual constrangimento, a principio, como as creanças que obedecem sem vontade ás ordens do mestre ou do pae; mas pousava-os, e elles eram taes que, ainda sem intenção, feriam de morte. Tambem sorria com frequencia e falava com graça. Ao piano, e por mais aborrecida que tocasse, tocava bem. Em summa, Camilla não faria obra de impulso proprio, sem ser por isso menos feiticeira. Quintanilha descobriu um dia de manhã que sonhára com ella a noite toda, e á noite que pensára nella todo o dia, e concluiu da descoberta que a amava e era amado. Tão tonto ficou que esteve prestes a imprimil-o nas folhas publicas. Quando menos, quiz dizel-o ao amigo Gonçalves e correu ao escriptorio d'este. A affeição de Quintanilha complicava-se de respeito e temor. Quasi a abrir a boca, engoliu outra vez o segredo. Não ousou dizel-o nesse dia nem no outro. Antes dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha. Adiou a revelação por uma semana. Um dia foi jantar com o amigo, e, depois de muitas hesitações, disse-lhe tudo; amava a prima e era amado. -- Você approva, Gonçalves? Gonçalves empallideceu,--ou, pelo menos, ficou serio; nelle a seriedade confundia-se com a pallidez. Mas, não; verdadeiramente ficou pallido. -- Approva? repetiu Quintanilha. Após alguns segundos, Gonçalves ia abrir a bocca para responder, mas fechou-a de novo, e fitou os olhos «em hontem», como elle mesmo dizia de si, quando os estendia ao longe. Em vão Quintanilha teimou em saber o que era, o que pensava, se aquelle amor era asneira. Estava tão acostumado a ouvir-lhe este vocabulo que já lhe não doia nem affrontava, ainda em materia tão melindrosa e pessoal. Gonçalves tornou a si d'aquella meditação, sacudiu os hombros, com ar desenganado, e murmurou esta palavra tão surdamente que o outro mal a poude ouvir: -- Não me pergunte nada; faça o que quizer. -- Gonçalves, que é isso? perguntou Quintanilha, pegando-lhe nas mãos, assustado. Gonçalves soltou um grande suspiro, que, se tinha azas, ainda agora estará voando. Tal foi, sem esta fórma paradoxal, a impressão de Quintanilha. O relogio da sala de jantar bateu oito horas, Gonçalves allegou que ia visitar um desembargador, e o outro despediu-se. Na rua, Quintanilha parou atordoado. Não acabava de entender aquelles gestos, aquelle suspiro, aquella pallidez, todo o effeito mysterioso da noticia dos seus amores. Entrára e falára, disposto a ouvir do outro um ou mais d'aquelles epithetos costumados e amigos, _idiota, credulo, paspalhão_, e não ouviu nenhum. Ao contrario, havia nos gestos de Gonçalves alguma cousa que pegava com o respeito. Não se lembrava de nada, ao jantar, que pudesse tel-o offendido; foi só depois de lhe confiar o sentimento novo que trazia a respeito da prima que o amigo ficou acabrunhado. -- Mas, não póde ser, pensava elle; o que é que Camilla tem que não possa ser boa esposa? Nisto gastou, parado, defronte da casa, mais de meia hora. Advertiu então que Gonçalves não saira. Esperou mais meia hora, nada. Quiz entrar outra vez, abraçal-o, interrogal-o... Não teve forças; enfiou pela rua fóra, desesperado. Chegou á casa de João Bastos, e não viu Camilla; tinha-se recolhido, constipada. Queria justamente contar-lhe tudo, e aqui é preciso explicar que elle ainda não se havia declarado á prima. Os olhares da moça não fugiam dos seus; era tudo, e podia não passar de faceirice. Mas o lance não podia ser melhor para clarear a situação. Contando o que se passára com o amigo, tinha o ensejo de lhe fazer saber que a amava e ia pedil-a ao pae. Era uma consolação no meio d'aquella agonia, o acaso negou-lh'a, e Quintanilha saiu da casa, peior do que entrára. Recolheu-se á sua. Não dormiu antes das duas horas da manhã, e não foi para repouso, senão para agitação maior e nova. Sonhou que ia a atravessar uma ponte velha e longa, entre duas montanhas, e a meio caminho viu surdir debaixo um vulto e fincar os pés defronte d'elle. Era Gonçalves. «Infame, disse este com os olhos accesos, porque me vens tirar a noiva de meu coração, a mulher que eu amo e é minha? Toma, toma logo o meu coração, é mais completo.» E com um gesto rapido abriu o peito, arrancou o coração e metteu-lh'o na bocca. Quintanilha tentou pegar da viscera amiga e repol-a no peito de Gonçalves; foi impossivel. Os queixos acabaram por fechal-a. Quiz cuspil-a, e foi peior; os dentes cravaram-se no coração. Quiz falar, mas vá alguem falar com a bocca cheia d'aquella maneira. Afinal o amigo ergueu os braços e estendeu-lhe as mãos com o gesto de maldição que elle vira nos melodramas, em dias de rapaz; logo depois, brotaram-lhe dos olhos duas immensas lagrimas, que encheram o valle de agua, atirou-se abaixo e desappareceu. Quintanilha accordou suffocado. A illusão do pesadelo era tal que elle ainda levou as mãos á bocca, para arrancar de lá o coração do amigo. Achou a lingua sómente, esfregou os olhos e sentou-se. Onde estava? Que era? E a ponte? E o Gonçalves? Voltou a si de todo, comprehendeu e novamente se deitou, para outra insomnia, menor que a primeira, é certo; veiu a dormir ás quatro horas. De dia, rememorando toda a vespera, realidade e sonho, chegou á conclusão de que o amigo Gonçalves era seu rival, amava a prima d'elle, era talvez amado por ella... Sim, sim, podia ser. Quintanilha passou duas horas crueis. Afinal pegou em si e foi ao escriptorio de Gonçalves, para saber tudo de uma vez; e, se fosse verdade, sim, se fosse verdade... Gonçalves redigia umas razões de embargo. Interrompeu-as para fital-o um instante, erguer-se, abrir o armario de ferro, onde guardava os papeis graves, tirar de lá o testamento de Quintanilha, e entregal-o ao testador. -- Que é isto? -- Você vae mudar de estado, respondeu Gonçalves, sentando-se á mesa. Quintanilha sentiu-lhe lagrimas na voz; assim lhe pareceu, ao menos. Pediu-lhe que guardasse o testamento; era o seu depositario natural. Instou muito; só lhe respondia o som aspero da penna correndo no papel. Não corria bem a penna, a letra era tremida, as emendas mais numerosas que de costume, provavelmente as datas erradas. A consulta dos livros era feita com tal melancolia que entristecia o outro. Ás vezes, parava tudo, penna e consulta, para só ficar o olhar fito «em hontem». -- Entendo, disse Quintanilha subitamente; ella será tua. -- Ella quem? quiz perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava, escada abaixo, como uma flecha, e elle continuou as suas razões de embargo. Não se adivinha todo o resto; basta saber o final. Nem se adivinha nem se crê; mas a alma humana é capaz de esforços grandes, no bem como no mal. Quintanilha fez outro testamento, legando tudo á prima, com a condição de desposar o amigo. Camilla não acceitou o testamento, mas ficou tão contente, quando o primo lhe falou das lagrimas de Gonçalves, que acceitou Gonçalves e as lagrimas. Então Quintanilha não achou melhor remedio que fazer terceiro testamento legando tudo ao amigo. O final da historia foi dito em latim. Quintanilha serviu de testemunha ao noivo, e de padrinho aos dous primeiros filhos. Um dia em que, levando doces para os afilhados, atravessava a praça Quinze de Novembro, recebeu uma bala revoltosa (1893) que o matou quasi instantaneamente. Está enterrado no cemiterio de S. João Baptista; a sepultura é simples, a pedra tem um epitaphio que termina com esta pia phrase: «Orae por elle!» É tambem o fecho da minha historia. Orestes vive ainda, sem os remorsos do modelo grego. Pylades é agora o personagem mudo de Sophocles. Orae por elle! Anecdota do cabriolet --_Cabriolet_ está ahi, sim, senhor, dizia o preto que viera á matriz de S. José chamar o vigario para sacramentar dous moribundos. A geração de hoje não viu a entrada e a saida do _cabriolet_ no Rio de Janeiro. Tambem não saberá do tempo em que o _cab_ e o _tilbury_ vieram para o rol dos nossos vehiculos de praça ou particulares. O _cab_ durou pouco. O _tilbury_, anterior aos dous, promette ir á destruição da cidade. Quando esta acabar e entrarem os cavadores de ruinas, achar-se-ha um parado, com o cavallo e o cocheiro em ossos, esperando o freguez do costume. A paciencia será a mesma de hoje, por mais que chova, a melancolia maior, como quer que brilhe o sol, porque juntará a propria actual á do espectro dos tempos. O archeologo dirá cousas raras sobre os tres esqueletos. O _cabriolet_ não teve historia; deixou apenas a anecdota que vou dizer. --Dous! exclamou o sacristão. --Sim, senhor, dous: nhã Annunciada e nhô Pedrinho. Coitado de nhô Pedrinho! E nhã Annunciada, coitada! continuou o preto a gemer, andando de um lado para outro, afflicto, fóra de si. Alguem que leia isto com a alma turva de duvidas, é natural que pergunte se o preto sentia devéras, ou se queria picar a curiosidade do coadjuctor e do sacristão. Eu estou que tudo se póde combinar neste mundo, como no outro. Creio que elle sentia devéras: não descreio que anciasse por dizer alguma historia terrivel. Em todo caso, nem o coadjuctor nem o sacristão lhe perguntavam nada. Não é que o sacristão não fosse curioso. Em verdade, pouco mais era que isso. Trazia a parochia de cór; sabia os nomes ás devotas, a vida dellas, a dos maridos e a dos paes, as prendas e os recursos de cada uma, e o que comiam, e o que bebiam, e o que diziam, os vestidos e as virtudes, os dotes das solteiras, o comportamento das casadas, as saudades das viuvas. Pesquizava tudo; nos intervallos ajudava a missa e o resto. Chamava-se João das Mercês, homem quarentão, pouca barba e grisalho, magro e meão. --Que Pedrinho e que Annunciada serão esses? dizia comsigo, acompanhando o coadjuctor. Embora ardesse por sabel-os, a presença do coadjuctor impediria qualquer pergunta. Este ia tão calado e pio, caminhando para a porta da egreja, que era força mostrar o mesmo silencio e piedade que elle. Assim foram andando. O _cabriolet_ esperava-os; o cocheiro desbarretou-se, os vizinhos e alguns passantes ajoelharam-se, emquanto o padre e o sacristão entravam e o vehiculo enfiava pela rua da Misericordia. O preto desandou o caminho a passo largo. Que andem burros e pessoas na rua, e as nuvens no ceu, se as ha, e os pensamentos nas cabeças, se os tem. A do sacristão tinha-os varios e confusos. Não era ácerca de _Nosso-Pae_, embora soubesse adoral-o, nem da agua benta e do hyssope que levava; tambem não era ácerca da hora,--oito e quarto da noite,--aliás, o ceu estava claro e a lua ia apparecendo. O proprio _cabriolet_, que era novo na terra, e substituia neste caso a sege, esse mesmo vehiculo não occupava o cerebro todo de João das Mercês, a não ser na parte que pegava com nhô Pedrinho e nhâ Annunciada. --Ha de ser gente nova, ia pensando o sacristão, mas hóspeda em alguma casa, de certo, porque não ha casa vasia na praia, e o numero é da do commendador Brito. Parentes, serão? Que parentes, se nunca ouvi...? Amigos, não sei; conhecidos, talvez, simples conhecidos. Mas então mandariam _cabriolet_? Este mesmo preto é novo na casa; ha de ser escravo de um dos moribundos, ou de ambos. Era assim que João das Mercês ia cogitando, e não foi por muito tempo. O _cabriolet_ parou á porta de um sobrado, justamente a casa do commendador Brito, José Martins de Brito. Já havia algumas pessoas em baixo com velas, o padre e o sacristão apearam-se e subiram a escada, acompanhados do commendador. A esposa deste, no patamar, beijou o annel ao padre. Gente grande, creanças, escravos, um borborinho surdo, meia claridade, e os dous moribundos á espera, cada um no seu quarto, ao fundo. Tudo se passou, como é de uso e regra, em taes occasiões. Nhô Pedrinho foi absolvido e ungido, nhâ Annunciada tambem, e o coadjuctor despediu-se da casa para tornar á matriz com o sacristão. Este não se despediu do commendador sem lhe perguntar ao ouvido se os dous eram parentes seus. Não, não eram parentes, respondeu Brito; eram amigos de um sobrinho que vivia em Campinas; uma historia terrivel... Os olhos de João das Mercês escutaram arregaladamente estas duas palavras, e disseram, sem falar, que viriam ouvir o resto,--talvez naquella mesma noite. Tudo foi rapido, porque o padre descia a escada, era força ir com elle. Foi tão curta a moda do _cabriolet_ que este provavelmente não levou outro padre a moribundos. Ficou-lhe a anecdota, que vou acabar já, tão escassa foi ella, uma anecdota de nada. Não importa. Qualquer que fosse o tamanho ou a importancia, era sempre uma fatia de vida para o sacristão, que ajudou o padre a guardar o pão sagrado, a despir a sobrepeliz, e a fazer tudo mais, antes de se despedir e sair. Saiu, emfim, a pé, rua acima, praia fóra, até parar á porta do commendador. Em caminho foi evocando toda a vida daquelle homem, antes e depois da commenda. Compoz o negocio, que era fornecimento de navios, creio eu, a familia, as festas dadas, os cargos parochiaes, commerciaes e eleitoraes, e daqui aos boatos e anecdotas não houve mais que um passo ou dous. A grande memoria de João das Mercês guardava todas as cousas, maximas e minimas, com tal nitidez que pareciam da vespera, e tão completas que nem o proprio objecto delles era capaz de as repetir eguaes. Sabia-as como o Padre-Nosso, isto é, sem pensar nas palavras; elle resava tal qual comia, mastigando a oração, que lhe saía dos queixos sem sentir. Se a regra mandasse rezar tres duzias de Padre-Nossos seguidamente, João das Mercês os diria sem contar. Tal era com as vidas alheias; amava sabel-as, pesquisava-as, decorava-as, e nunca mais lhe saiam da memoria. Na parochia todos lhe queriam bem, porque elle não enredava nem maldizia. Tinha o amor da arte pela arte. Muita vez nem era preciso perguntar nada. José dizia-lhe a vida de Antonio e Antonio a de José. O que elle fazia era ratificar ou rectificar um com outro, e os dous com Sancho, Sancho com Martinho, e vice-versa, todos com todos. Assim é que enchia as horas vagas, que eram muitas. Alguma vez, á propria missa, recordava uma anecdota da vespera, e, a principio, pedia perdão a Deus; deixou de lh'o pedir quando reflectiu que não falhava uma só palavra ou gesto do santo sacrificio, tão consubstanciados os trazia em si. A anecdota que então revivia por instantes, era como a andorinha que atravessa uma paizagem. A paizagem fica sendo a mesma, e a agua, se ha agua, murmura o mesmo som. Esta comparação, que era delle, valia mais do que elle pensava, porque a andorinha, ainda voando, faz parte da paizagem, e a anecdota fazia nelle parte da pessoa; era um dos seus actos de viver. Quando chegou á casa do commendador, tinha desfiado o rosario da vida deste, e entrou com o pé direito para não sair mal. Não pensou em sair cedo, por mais afflicta que fosse a occasião, e nisto a fortuna o ajudou. Brito estava na sala da frente, em conversa com a mulher, quando lhe vieram dizer que João das Mercês perguntava pelo estado dos moribundos. A esposa retirou-se da sala, o sacristão entrou pedindo desculpas e dizendo que era por pouco tempo; ia passando e lembrára-se de saber se os enfermos tinham ido para o ceu,--ou se ainda eram deste mundo. Tudo o que dissesse respeito ao commendador seria ouvido por elle com interesse. --Não morreram, nem sei se escaparão; quando menos, ella creio que morrerá, concluiu Brito. --Parecem bem mal. --Ella, principalmente; tambem é a que mais padece da febre. A febre os pegou aqui em nossa casa, logo que chegaram de Campinas, ha dias. --Já estavam aqui? perguntou o sacristão, pasmado de o não saber. --Já; chegaram ha quinze dias,--quatorze. Vieram com o meu sobrinho Carlos e aqui apanharam a doença... Brito interrompeu o que ia dizendo; assim pareceu ao sacristão, que poz no semblante toda a expressão de pessoa que espera o resto. Entretanto, como o outro estivesse a morder os beiços e a olhar para as paredes, não viu o gesto de espera, e ambos se detiveram calados. Brito acabou andando ao longo da sala, emquanto João das Mercês dizia comsigo que havia alguma cousa mais que febre. A primeira idéa que lhe acudiu, foi se os medicos teriam errado na doença ou no remedio; tambem pensou que podia ser outro mal escondido, a que deram o nome de febre para encobrir a verdade. Ia acompanhando com os olhos o commendador, emquanto este andava e desandava a sala toda, apagando os passos para não aborrecer mais os que estavam dentro. De lá vinha algum murmurio de conversação, chamado, recado, porta que se abria ou fechava. Tudo isso era cousa nenhuma para quem tivesse outro cuidado; mas o nosso sacristão já agora não tinha mais que saber o que não sabia. Quando menos, a familia dos enfermos, a posição, o actual estado, alguma pagina da vida delles, tudo era conhecer algo, por mais arredado que fosse da parochia. --Ah! exclamou Brito estacando o passo. Parecia haver nelle o desejo impaciente de referir um caso,--a «historia terrivel», que annunciára ao sacristão, pouco antes; mas nem este ousava pedil-a, nem aquelle dizel-a, e o commendador pegou a andar outra vez. João das Mercês sentou-se. Viu bem que em tal situação cumpria despedir-se com boas palavras de esperança ou de conforto, e voltar no dia seguinte; preferiu sentar-se e aguardar. Não viu na cara do outro nenhum signal de reprovação do seu gesto; ao contrario, elle parou defronte e suspirou com grande cançaço. --Triste, sim, triste, concordou João das Mercês. Boas pessoas, não? --Iam casar. --Casar? Noivos um do outro? Brito confirmou de cabeça. A nota era melancolica, mas não havia signal da historia terrivel annunciada, e o sacristão esperou por ella. Observou comsigo que era a primeira vez que ouvia alguma cousa de gente que absolutamente não conhecia. As caras, vistas ha pouco, eram o unico signal dessas pessoas. Nem por isso se sentia menos curioso. Iam casar... Podia ser que a historia terrivel fosse isso mesmo. Em verdade, atacados de um mal na vespera de um bem, o mal devia ser terrivel. Noivos e moribundos... Vieram trazer recado ao dono da casa; este pediu licença ao sacristão, tão depressa que nem deu tempo a que elle se despedisse e saisse. Correu para dentro, e lá ficou cincoenta minutos. Ao cabo, chegou á sala um pranto suffocado; logo após, tornou o commendador. --Que lhe dizia eu, ha pouco? Quando menos, ella ia morrer; morreu. Brito disse isto sem lagrimas e quasi sem tristeza. Conhecia a defunta de pouco tempo. As lagrimas, segundo referiu, eram do sobrinho de Campinas e de uma parenta da defunta, que morava em Mata-porcos. Dahi a suppôr que o sobrinho do commendador gostasse da noiva do moribundo foi um instante para o sacristão, mas não se lhe pegou a idéa por muito tempo; não era forçoso, e depois se elle proprio os acompanhára... Talvez fosse padrinho de casamento. Quiz saber, e era natural,--o nome da defunta. O dono da casa,--ou por não querer dar-lh'o,--ou porque outra idéa lhe tomasse agora a cabeça,--não declarou o nome da noiva, nem do noivo. Ambas as causas seriam. --Iam casar... --Deus a receberá em sua santa guarda, e a elle tambem, se vier a expirar, disse o sacristão cheio de melancolia. E esta palavra bastou a arrancar metade do segredo que parece anciava por sair da boca do fornecedor de navios. Quando João das Mercês lhe viu a expressão dos olhos, o gesto com que o levou á janella, e o pedido que lhe fez de jurar,--jurou por todas as almas dos seus que ouviria e calaria tudo. Nem era homem de assoalhar as confidencias alheias, mórmente as de pessoas gradas e honradas, como era o commendador. Ao que este se deu por satisfeito e animado, e então lhe confiou a primeira metade do segredo, a qual era que os dous noivos, criados juntos, vinham casar aqui quando souberam, pela parenta de Mata-porcos, uma noticia abominavel... --E foi...? precipitou-se em dizer João das Mercês, sentindo alguma hesitação no commendador. --Que eram irmãos. --Irmãos como? Irmãos de verdade? --De verdade; irmãos por parte de mãe. O pae é que não era o mesmo. A parenta não lhes disse tudo nem claro, mas jurou que era assim, e elles ficaram fulminados durante um dia ou mais... João das Mercês não ficou menos espantado que elles; dispoz-se a não sair dalli sem saber o resto. Ouviu dez horas, ouviria todas as demais da noite, velaria o cadaver de um ou de ambos, uma vez que pudesse juntar mais esta pagina ás outras da parochia, embora não fosse da parochia. --E vamos, vamos, foi então que a febre os tomou...? Brito cerrou os dentes para não dizer mais nada. Como, porém, o viessem chamar de dentro, acudiu depressa, e meia hora depois estava de volta, com a nova do segundo passamento. O choro, agora mais franco, posto que mais esperado, não havendo já de quem o esconder, trouxera a noticia ao sacristão. --Lá se foi o outro, o irmão, o noivo... Que Deus lhes perdôe! Saiba agora tudo, meu amigo. Saiba que elles se queriam tanto que alguns dias depois de conhecido o impedimento natural e canonico do consorcio, pegaram em si e, fiados em serem apenas meios irmãos e não irmãos inteiros, metteram-se em um _cabriolet_ e fugiram de casa. Dado logo o alarme, alcançámos pegar o _cabriolet_ em caminho da Cidade Nova, e elles ficaram tão pungidos e vexados da captura que adoeceram de febre e acabam de morrer. Não se póde escrever o que sentiu o sacristão, ouvindo-lhe este caso. Guardou-o por algum tempo, com difficuldade. Soube os nomes das pessoas pelo obituario dos jornaes, e combinou as circumstancias ouvidas ao commendador com outras. Emfim, sem se ter por indiscreto, espalhou a historia, só com esconder os nomes e contal-a a um amigo, que a passou a outro, este a outros, e todos a todos. Fez mais; metteu-se-lhe em cabeça que o _cabriolet_ da fuga podia ser o mesmo dos ultimos sacramentos; foi á cocheira, conversou familiarmente com um empregado, e descobriu que sim. Donde veiu chamar-se a esta pagina a «anecdota do _cabriolet_.» Paginas criticas e commemorativas GONÇALVES DIAS DISCURSO LIDO NO PASSEIO PUBLICO, AO INAUGURAR-SE O BUSTO DE GONÇALVES DIAS Sr. Prefeito do Districto Federal, A commissão que tomou a si erguer este monumento, incumbiu-me, como presidente da Academia Brazileira, de o entregar a V Ex., como representante da cidade. O encargo é não sómente honroso, mas particularmente agradavel á Academia e a mim. Se eu houvesse de dizer tudo o que este busto exprime para nós, faria um discurso, e é justamente o que os autores da homenagem não devem querer neste momento. Conta Renan que, uma hora antes dos funeraes de George Sand, quando alguns cogitavam no que convinha proferir á beira da sepultura, ouviu-se no parque da defunta cantar um rouxinol. «Ah! eis o verdadeiro discurso!» disseram elles comsigo. O mesmo seria aqui, se cantasse um sabiá. A ave do nosso grande poeta seria o melhor discurso da occasião. Ella repetiria á alma de todos aquella canção do exilio que ensinou aos ouvidos da antiga mãe-patria uma licção nova da lingua de Camões. Não importa! A canção está em todos nós, com os outros cantos que elle veiu espalhando pela vida e pelo mundo, e o som dos golpes de Itajuba, a piedade de Y-Juca-Pyrama, os suspiros de Coema, tudo o que os mais velhos ouviram na mocidade, depois os mais jovens, e daqui em deante ouvirão outros e outros, emquanto a lingua que falamos fôr a lingua dos nossos destinos. Dizem que os cariocas somos pouco dados aos jardins publicos. Talvez este busto emende o costume; mas, suppondo que não, nem por isso perderão os que só vierem contemplar aquella fronte que meditou paginas tão magnificas. A solidão e o silencio são azas robustas para os surtos do espirito. Quem vier a este canto do jardim, entre o mar e a rua, achará o que se encontra nas capellas solitarias, uma voz interior, e dirá pelo rosario da memoria as preces em verso que elle compoz e ensinou aos seus compatricios. E desde já ficam as duas obras juntas. Uma responderá pela outra. Nem V. Ex., nem os seus successores consentirão que se destrua este abrigo de folhas verdes, ou se arranque daqui este monumento de arte. Se alguem propuzer arrazar um e mudar outro, para trazer utilidade ao terreno, por meio de uma avenida ou cousa equivalente, o Prefeito recusará a concessão, dizendo que este jardim, conservado por diversos regimens, está agora consagrado pela poesia, que é um regimen só, universal, commum e perpetuo. Tambem póde declarar que a veneração dos seus grandes homens é uma virtude das cidades. E isto farão os Prefeitos de todos os partidos, sem aggravo do seu proprio, porque o poeta que ora celebramos, fiel á vocação, não teve outro partido que o de cantar maravilhosamente. Demais, se o caso fôr de utilidade, V. Ex. e os seus successores acharão aqui o mais util remedio ás agruras administrativas. Este busto consolará do trabalho acerbo e ingrato; elle dirá que ha tambem uma prefeitura do espirito, cujo exercicio não pede mais que o mudo bronze e a capacidade de ser ouvido no seu eterno silencio. E repetirá a todos o nome de V. Ex., que o recebeu e o dos outros que porventura vierem contemplal-o. Tambem aqui vinha, ha muitos annos, desenfadar-se da vespera, sem outro encargo nem magistratura que os seus livros, o autor de _Iracema_. Se já estivesse aqui este busto, elle se consolaria da vida com a memoria, e do tempo com a perennidade. Mas então só existiam as arvores. Bernardelli, que tinha de fundir o bronze de ambos, não povoára ainda as nossas praças com outras obras de artista illustre. Olavo Bilac, que promoveu a subscripção de senhoras a que se deve esta obra, não afinára ainda pela lyra de Gonçalves Dias a sua lyra deliciosa. Aqui fica entregue o monumento a V. Ex., Sr. Prefeito, aqui onde elle deve estar, como outro exemplo da nossa unidade, ligando a patria inteira no mesmo ponto em que a historia, melhor que leis, poz a cabeça da nação, perto daquelle gigante de pedra que o grande poeta cantou em versos masculos. UM LIVRO Aqui está um livro que ha de ser relido com apreço, com interesse, não raro com admiração. O autor que occupa logar eminente na critica brasileira, tambem enveredou um dia pela novella, como Sainte-Beuve, que escreveu _Volupté_, antes de attingir o summo gráo na critica franceza. Tambem ha aqui um narrador e um observador, e ha mais aquillo que não acharemos em _Volupté_, um paizagista e um miniaturista. Já era tempo de dar ás _Scenas da vida amazonica_ outra e melhor edição. Eu, que as reli, achei-lhes o mesmo sabor de outr'ora. Os que as lerem, pela primeira vez, dirão se o meu falar desmente as suas proprias impressões. Talvez achem commigo que o titulo é exacto, sem dizer tudo. São effectivamente scenas daquella vida e daquelle meio; sente-se que não podem ser de outra parte, que foram vistas e recolhidas directamente. Mas não diz tudo o titulo. Tres, ao menos, das quatro novellas em que se divide o livro, são pequenos dramas completos. Taes o _Bôto_, o _Crime do Tapuio_ e a _Sorte de Vicentina_. O proprio _Voluntario da patria_ tem o drama na alma de tia Zeferina, desde a quietação na palhoça até aquelle adeus que ella fica acenando na margem, não já ao filho, que a não póde ver, nem ella a elle, mas ao fumo do vapor que se perde ao longe no rio, como uma sombra. Em todos elles, os costumes locaes e a natureza grande e rica, quando não é só aspera e dura, servem de quadro a sentimentos ingenuos, simples e alguma vez fortes. O Sr. José Verissimo possue o dom da sympathia e da piedade. As suas principaes figuras são as victimas de um meio rude, como Benedicta, Rosinha e Vicentina, ou ainda aquelle José Tapuio, que confessa um crime não existente, com o unico fim de salvar uma menina, ou de «fazê bem p'ra ella», como diz o texto. Não se irritem os amigos da lingua culta com a prosodia e a syntaxe de José Tapuio. Ha dessas phrases no livro, postas com arte e cabimento, a espaços, onde é preciso caracterisar melhor as pessoas. Ha locuções da terra. Ha a technologia dos usos e costumes. Ninguem esquece que está deante da vida amazonica, não toda, mas aquella que o Sr. José Verissimo escolheu naturalmente para dar-nos a visão do contraste entre o meio e o homem. O contraste é grande. A floresta e a agua envolvem e acabrunham a alma. A magnificencia d'aquellas regiões chega a ser excessiva. Tudo é innumeravel e immensuravel. São milhões, milhares e centenas os seres que vão pelos rios e igarapés, que espiam entre a agua e a terra, ou bramam e cantam na matta, em meio de um concerto de rumores, coleras, delicias e mysterios. O Sr. José Verissimo dá-nos a sensação daquella realidade. A descripção do caminho que leva ao povoado do Ereré, atravez do «coberto», do «lavrado» e de um espaço sem nome, é das mais bellas e acabadas do livro. Assim tambem a do Parú, ou antes a historia do rio nas duas partes do anno, de verão e de inverno, um só lago intermino ou muitos lagos grandes, as ilhas que nascem e desapparecem, com os aspectos varios do tempo e da margem. Não são descripções trazidas de acarreto. As pessoas das narrativas vão para alli continuar a acção começada. No Parú, como o tempo é de «salga», a agua é sulcada de canôas, a margem alastrada de barracas, o sussurro do trabalho humano espalha-se e cresce. Ahi assistimos á morte tragica do pelintra de Obidos, regatão de alguns dias, deixando uma triste moça defunta, amarella e magra. Adeante, por meio do «coberto» e do «lavrado», vemos correr Vicentina, com a filha de alguns mezes «escarranchada nos quadris», fugindo á casa do marido, depois ás onças, depois á solidão, que parece maior alli que em nenhuma parte; e ambas as scenas são das mais vivas do livro. Ao pé do tragico, o mesquinho, o commum, o quotidiano da existencia e dos costumes, que o autor pinta breve ou minuciosamente. Os pequenos quadros succedem-se, como o da rua Bacuri, na cidade de Obidos, á hora da sésta, ou no fim d'ella, quando «a natureza estira os braços n'um bocejo preguiçoso de quem deixa a rêde». A rêde é o movel principal das casas; ella serve ao somno, ao descanço, á palestra, á indolencia. Se a casa é pobre, pouco mais ha que ella; mas, pouco ou muito, podemos fiar-nos da veracidade do autor, que não perde o que seja um rasgo de costumes ou possa avivar a côr da realidade. Vimos o regatão; veremos a benzedeira, a pintadeira de cuias, a mameluca, sem exclusão do jurado, do promotor, do presidente de provincia. Nem falta aqui a observação fina e aguda. Uma senhora, a quem a tia Zeferina, que a criou, recorre chorando para que faça soltar o filho, preso para voluntario (como diziam aqui no sul), ouve a mãe tapuia, tem sincera pena della, promette que sim, fala do presidente da provincia, que é bom moço, do baile do dia 7 de Setembro, em palacio, a que ella foi: «uma festa de estrondo; as senhoras estavam todas vestidas de verde e amarello; muitas tinham mandado vir o vestido do Pará, mas foi tolice, porque em Manáos arranjava-se um vestido tão bem como no Pará; o della, por exemplo, foi muito gabado...» Já a tia Zeferina ouvira cousa analoga ao major Rabello, seu compadre, quando lhe foi contar a prisão do filho, e elle rompeu furioso contra os adversarios politicos. Todos os negocios pessoaes se vão coçando assim naquella agonia errante. No _Bôto_, é o proprio pae de Rosinha, que não excava muito as razões do abatimento mortal da filha, «por andar atarefado com as eleições». Que elle tambem ha eleições no Amazonas; é o tempo da salga politica, a quadra das barracas e dos regatões. Não nos dá um capitulo desses o Sr. José Verissimo, naturalmente por lhe não ser necessario, mas a rivalidade da villa e do porto de Monte Alegre é um quadro vivo do que são raivas locaes, os motivos que as accendem, a guerra que fazem e os odios que ficam. Aqui basta a questão de saber se o correio morará no porto, em baixo, ou na villa em cima. E porque não ha victoria sem foguetes, os foguetes vão contar ás nuvens o despacho presidencial. A sessão do jury, no _Crime do Tapuio_, é outro quadro finamente acabado. Tudo sem sombra de caricatura. O embarque dos voluntarios é outro, mas ahi a emoção discreta acompanha os movimentos mal ordenados dos homens. Nós os vimos desembarcar aqui, esses e outros, tropegos e obedientes, marchando mal, mas emfim marchando seguros para a guerra que já lá vae. Em tão varias scenas e lances, o estylo do Sr. José Verissimo (salvo nos _Esbocetos_, cuja estructura é differente) é já o estylo correntio e vernaculo dos seus escriptos posteriores. Já então vemos o homem feito de mão assentada, dominando a materia. Ha, a mais uma nota de poesia, a graça e o vigor das imagens que outra sorte de trabalhos nem sempre consentem. Aqui está a frente da casa do sitio em que Rosinha nasceu: «A palha da cobertura, não aparada, dava-lhe o aspecto alvar das creanças que trazem os cabellos cahidos na testa.» No tempo da pesca emigram, não só os homens, mas tambem os cães e os urubús. Os cães são magros e famintos: «Cães magros, com as costellas salientes, como se houvessem engolido arcos de barris...» Os urubús pousam nas arvores, alguma vez baixam ao solo, andando «com o seu passo rythmado de anjos de procissão». A umas arvores que ha na grande charneca do «coberto», bastava mostral-as por uma imagem curta e viva, «em posições retorcidas de entrevados». Mas não se contenta o nosso autor de as dizer assim: em terra tal, tudo ha de vibrar ao calor do sol: «Dir-se-hia que o sol, que abraza aquellas paragens, obriga-as a taes contorções violentas e paralysa-as depois...» Ha muitas dessas imagens originaes e expressivas; melhor é lel-as ou relel-as intercaladas na narração e na descripção. Chateaubriand, escrevendo em 1834 a Sainte-Beuve, justamente a proposito de _Volupté_, que acabava de sahir do prélo, pergunta-lhe admirado como é que elle, René, não achára tantas outras. «Comment n'ai-je pas trouvé _ces deux vieillards et ces deux enfants entre lesquels une révolution a passé_...» etc. Desculpe a pontinha de vaidade, é de Chateaubriand, e alguma cousa se ha de perdoar ao genio. Mas, em verdade, mais de um de nós outros poderiamos dizer com sinceridade e modestia como é que nos não acudiram taes e taes imagens do nosso autor, pois que ellas trazem a feição de cousas antes saidas do tinteiro que compostas no papel. Tambem é dado perguntar porque é que o Sr. José Verissimo deixou logo um terreno que soube arrotear com fructo. Elle dirá, em uma nota, falando dos _Esbocetos_, que o fructo era da primeira mocidade. Vá que sim; mas as _Scenas_ trazem outra experiencia, e a boa terra não é esquecida, se se lhe encommenda alguma cousa com amor. Até lá, fiquem-nos estas _Scenas da vida amazonica_. Mais tarde, algum critico da escola do autor compulsará as suas paginas para restituir costumes extinctos. Muito estará mudado. Onde José Tapuio lutou com a sicurijú até matal-a, outro homem estudará alguma nova força da natureza até reduzil-a ao domestico. Coberto e lavrado darão melhor caminho ás pessoas. Já agora, como disse nhâ Miloca á mãe tapuia, os vestidos fazem-se tão bons em Manáos como em Belém. A politica irá pelas tesouras da costureira, e a natureza agasalhará todas as artes, suas hospedas. Tal critico, se tiver o mesmo dom de analyse do Sr. José Verissimo, achará que um testemunho esclarecido é mais cabal que outro, e regalará os seus leitores dando-lhe este depoimento feito com emoção, com exacção e com estylo. EDUARDO PRADO A ultima vez que vi Eduardo Prado foi na vespera de deixar o Rio de Janeiro para recolher a S. Paulo, dizem que com o germen do mal e da morte em si. Naquella occasião era todo vida e saúde. Quem então me dissesse que elle ia tambem deixar o mundo, não me causaria espanto, porque a injustiça da natureza acostuma a gente aos seus golpes; mas, é certo que eu buscaria maneira de obter outras horas como aquella, em que me detivesse ao pé delle, para ouvil-o e admiral-o. Só falámos de arte. Ouvi-lhe noticias e impressões, senti-lhe o gosto apurado e a critica superior, tudo envolvido naquelle tom ameno e simples, que era um relevo mais aos seus dotes. Não tinhamos intimidade; faltou-nos tempo e a pratica necessaria. Antes daquella vez ultima, apenas falámos tres ou quatro, o bastante para consideral-o bem e cotejar o homem com o escriptor. Eduardo Prado era dos que se deixam penetrar sem esforço e com prazer. O que agora li a seu respeito na primeira mocidade, na escola e nos ultimos annos, referido por amigos que parecem não o esquecer mais, confirma a minha impressão pessoal. Aliás, os seus escriptos mostravam bem o homem. Apanhava-se o sentimento da harmonia que ajustava nelle a vida moral, intellectual e social. Principalmente artista e pensador, possuia o divino horror á vulgaridade, ao logar commum e á declamação. Se entrasse na vida politica, que apenas atravessou com a penna, em dias de luta, levaria para ella qualidades de primeira ordem, não contando o _humour_, tão diverso da chalaça e tão original nelle. Mas a erudição e a historia, não menos que a arte, eram agora o seu maior encanto. Sabia bem todas as cousas que sabia. Naturalmente remontei commigo, durante aquella boa hora, e ainda depois della, ao tempo das cartas de viagem que nos deu tão rica amostra de um grande talento que viria a crescer e subir. A materia em si convidava ao egotismo, mas elle não padecia desse mal. Tambem faria correr o risco da repetição de cousas vistas e pintadas, que se não acha aqui. A faculdade de ver claro e largo, a arte de dizer originalmente a sensação pessoal, elle as possuia como os principaes que hajam andado as terras ou rasgado os mares deste mundo. Invenção de estylo, observação aguda, erudição discreta e vasta, graça, poesia e imaginação produziram essas paginas vivas e saborosas. Aquella partida de Napoles, sob um céo chuvoso e de chumbo, não se esquece. Relê-se com encanto essa explicação do tempo aspero, durante o qual o céo napolitano se recompõe, para começar novamente a opera «com os córos de pescadores e as barcarolas, a musica de luz e de azul». Assim a Africa, assim todas as partes onde quer que este brasileiro levou a ancia de ver homens e cousas, cidades e costumes, a natureza vária entre ruínas perpetuas, através de regiões remotas... Conta-se que elle chorou, quando morreu Eça de Queiroz. Agora, que ambos são mortos, alguem que imaginasse e escrevesse o encontro das duas sombras, á maneira de Luciano, daria uma curiosa pagina de psychologia. As confabulações de taes espiritos são dignas de memoria. Sterne escreveu que «um dia, conversando com Voltaire...» e imagina-se o que diriam elles. Imagina-se o que diriam, todas as noites, Stendhal e Byron, passeando no solitario _foyer_ do theatro Scala. Quando Montaigne ouvia as historias que Amyot lhe ia contar, podemos ver a delicia de ambos e admittir que as visitas continuam no outro mundo. Assim se podia dizer do Eça e do Eduardo, por um texto que exprimisse o talento, o amor das cousas finas e bellas, e, emfim, a grande sympathia que um inspirava ao outro. Quando me despedi de Eduardo Prado, naquelle dia, vim perguntando a mim mesmo se teria vida bastante para ler e admirar as obras-primas que esse talentoso brasileiro levava no cerebro em gestação, ou em germen, e durante muitos annos viriam abastecer a nossa lingua e a nossa terra. Seis dias depois, era elle que morria. Chamei injusta á natureza; bastaria dizer--indifferente. ANTONIO JOSÉ Um dia destes, relembrando uma passagem da tragedia que Magalhães consagrou á memoria de Antonio José, adverti na resposta dada pelo judeu ao conde de Ericeira, quando este lhe recommenda que imite Molière; o judeu responde que Molière escrevia para francezes e elle não. Será essa resposta a rigorosa expressão da verdade? Antonio José não se modelou, certamente, pelas obras do grande comico, não cogitou jamais da simples pintura dos vicios e dos caracteres. Molière caminhou do _Medico Volante_ e dos _Zelos de Barbouillé_ á _Escola das Mulheres_ e ao _Tartufo_; Antonio José não passou das _Guerras do Alecrim e Mangerona_, e, dado que tentasse fazel-o, é certo que não poderia ir muito além. Não tinha centro apropriado, nem largas vistas; faltavam-lhe outros meios, outros intuitos; e, se porventura entrou em seu espirito reatar a tradição de Gil Vicente, levantando sobre os alicerces lançados por esse operario do seculo XVI as paredes de um theatro regular, convinha justamente não imitar nada, nem ninguem, não se fazer Molière, nem Plauto, ficar Antonio José; é a condição das obras vivas. Interpretada desse modo, é exacta e verdadeira a resposta que Magalhães põe na boca do judeu; mas só desse modo. O _Amphytrião_ prova que o nosso poeta alguma cousa imitou e transplantou de Molière, a tal ponto que forçosamente o tinha deante de si, ou na banca de trabalho ou na memoria; e, porque esta observação não haja sido feita, cuido que interessará, quando menos, a titulo de curiosidade litteraria. Ao mesmo tempo, direi o que me parece do escriptor e da sua obra. E, antes de mais nada, occorre ponderar que Antonio José gosa de uma reputação sobre palavra. A fogueira de 18 de Outubro de 1739 illuminou-lhe a figura de maneira que o puderam ver todos os olhos; a tragedia do Sr. Magalhães vulgarisou-o entre as nossas platéas de ha 40 annos; mas só os estudiosos o terão lido, e nem todos, porque a tarefa exige constancia e esforço, embora de certo modo os pague. Póde-se dizer, sem erro, que elle pertence á familia dos poetas comicos, qualquer que seja o grau de parentesco,--com a circumstancia que era um desperdiçado,--trocava a boa moeda do comico pelo cobre vulgar do burlesco. Mas, poeta comico era-o, e de boa veia;--mais de certo que Nicolau Luiz, que lhe succedeu na estima das platéas de Lisboa, mais ainda que Manuel de Figueiredo, cujas intenções literarias abafaram, talvez, a livre expansão do engenho, e que aliás escrevia de si mesmo que--«havendo-se enganado comsigo em infinitas cousas, nunca se preoccupou de que tinha graça.» Accresce que o fim tragico do judeu communica ás suas paginas alegres e juvenis um reflexo de sympathica melancolia, que ainda mais nos convida a percorrel-as e estudal-as. A piedade não é de certo razão determinativa em pontos de critica, e tal poetastro haverá que, succumbindo a uma grande injustiça social, somente inspire compaixão sem desafiar a analyse. Não é o caso de Antonio José; este mereceria por si só que o estudassemos, ainda despido das occorrencias tragicas que lhe circumdam o nome. Nenhuma das comedias do judeu se póde dizer excellente e perfeita; ha porém graus entre ellas, e a todas sobreleva a das _Guerras do Alecrim e Mangerona_. Nesta, como nas demais, nota-se de certo muita espontaneidade, viveza de dialogo, graça de estylo, variedade de situações, e certo conhecimento de scena; mas a alma de todas ellas não é grande; vive-se alli de enredo e de apparato. Se ao poeta foi estranha a invenção dos caracteres e a pintura dos vicios, não menos o foi a transcripção dos costumes locaes. Salvo o _Alecrim e Mangerona_, todas as suas peças são inteiramente alheias á sociedade e ao tempo; a _Esopaida_ tem por base um assumpto antigo; a _Vida de D. Quixote_ põe em scena o personagem de Cervantes; as outras peças são todas mythologicas. Podiam estas, não obstante o rotulo, conter a pintura dos costumes e da sociedade cujo producto eram; mas, comquanto em taes composições influa muito o moderno, não se descobre nellas nenhuma intenção daquella natureza. Ao contrario, a intenção quasi exclusiva do poeta era a galhofa, e tal galhofa que transcendia muita vez as raias da conveniencia publica. Nenhuma de suas peças,--operas é o nome classico,--nenhuma é isenta de expressões baixas e até obscenas, com que elle, segundo lhe arguia um prelado, «chafurdou na immundicie.» Tinha razão o prelado, mas não basta ter razão; cumpre saber tel-a. Ora, a baixeza e a obscenidade das locuções não eram novidade na scena portugueza, nem na de outros paizes; e, deixando de ir agora a exemplos estranhos á nossa lingua, basta lembrar que o _Cioso_, de Ferreira, do culto autor da _Castro_, foi dado por Figueiredo com a declaração de ter sido «expurgado segundo o melindre dos ouvidos do nosso seculo.» Gil Vicente, sem embargo de se representarem suas peças na côrte de D. João III e D. Manuel, adubava-as ás vezes de especies que nos parecem hoje bem pouco exquisitas. As operas do judeu eram dadas num theatro popular; não as ouvia a côrte de D. João V, mas o povo e os burguezes de Lisboa, cujas orelhas não teriam ainda os melindres que mais tarde lhes attribuiu Figueiredo. A differença entre Antonio José e os outros era afinal uma questão de quantidade; mas, se o tempo lh'o permittia e, com o tempo, a censura, que muito é que o poeta reincidisse? Não é isto escusal-o, mas explical-o. Deixemos os trocados e equivocos, que são um chiste de mau gosto, mácula de estylo, que o poeta exagerou até á puerilidade, cedendo a si mesmo e ao riso das platéas. Outro defeito que se lhe argúe, é o tom guindado e os arrebiques de conceito, que se notam em muitas falas de certos personagens, os deuses, principes e heróes. Um de seus biographos, comparando o estylo de taes personagens com o dos criados e pessoas infimas, que são simples e naturaes, suppõe que houve no poeta intenção satyrica, opinião que me parece carecer de fundamento, entre outras razões porque não ha sempre aquella differença de estylo, e não é raro falarem os principaes personagens do mesmo modo natural e recto, que os de condição inferior. Guindam-se muita vez, mas era achaque do tempo e exageração na maneira de empregar o estylo nobre, porque havia então um estylo nobre; e, se o judeu teve alguma vez intenção satyrica, arrebicando ou empolando a expressão, tal intenção foi sómente literaria e nenhuma outra. Que diremos dos anachronismos de linguagem? Esses são constantes e excessivos. Os dobrões de Alcmena, a alcunha de _alfacinha_ dada a Amphytrião, Juno chrismada em Felizarda, um criado antigo «de corpo á ingleza,» outro com «relogio de pendurucalhos,» deviam promover a gargalhada franca do povo. Esse fugir do meio e da acção para a realidade presente vae algumas vezes além, como na _Esopaida_, em que o heróe, falando de sua vida, diz que anda em livros pelo mundo--«e agora me dizem que se está representando no Bairro-Alto.» Já na _Vida de D. Quixote_ havia o poeta posto a mesma cousa na boca de Sancho, quando o cavalleiro, vendo um barco amarrado, pergunta ao escudeiro:--«Sabes onde estamos?--Sei bem.--Aonde?--No Bairro-Alto.» O judeu podia responder que tal séstro foi o de Regnard e o de Boursault, por exemplo, que poz o seu Esopo a tomar café e metteu com elle esposas de tabelliães; podia citar muitos outros exemplos anteriores e contemporaneos, e a critica se incumbiria de apontar os que vieram depois delle; mas não vale a pena. Venhamos ao _Amphytrião_. Um erudito escriptor, o Sr. Theophilo Braga, suppõe que a intenção do poeta, nessa comedia, foi pintar em Jupiter a pessoa de D. João V, supposição que detidamente examinei e me parece inteiramente gratuita. Cuido que o critico faz de uma coincidencia um proposito, e fundamenta a sua suspeita na possivel analogia das aventuras do deus pagão e do rei christão. A analogia podia ser um elemento de prova, mas desacompanhada de outras não faz chegar a nenhum resultado definitivo. Ora, basta ler o _Amphytrião_, basta comparar a situação do poeta e o tempo para varrer do espirito semelhante hypothese. Certo, não faltava audacia ao poeta; ahi está, como exemplo, a definição da justiça, feita por Sancho, na _Vida de D. Quixote_; mas entre a generalidade desse trecho e a satyra pessoal do _Amphytrião_ vae um abysmo. Occorre-me que do _Amphytrião_ de Molière tambem se disse ser allusão a Luiz XIV, com a differença que em França não se attribuiu a Molière a intenção de ferir, mas de ser agradavel ao rei, que lhe havia encommendado aquella apotheose de suas proprias aventuras, opinião esta que foi de todo condemnada. Não, não ha motivo para attribuir a Antonio José a intenção que lhe suppõe o Sr. Theophilo Braga; e, se tal intenção existisse, o desenlace da comedia, quando Jupiter se declara acima da lei, viria a ser de um sarcasmo tão crú que não alcançariamos comprehendel-o naquelle seculo. Evidentemente, o judeu achou na aventura pagã o mesmo que lhe acharam Plauto, Molière e Camões,--um assumpto prestadio ás combinações scenicas, e, demais, singularmente proprio para as chufas do Bairro-Alto. Desnecessario é dizer os tramites dessa travessura de Jupiter, que, namorado de Alcmena, toma a figura do marido e vae á casa della, acompanhado de Mercurio, que copia as feições de Sosias, criado de Amphytrião. O nosso poeta seguiu no principal a fabula que encontrou nos antecessores, fazendo-lhe todavia as alterações suscitadas pelo gosto proprio e das platéas. Assim, o Sosias de Plauto, de Molière e de Camões é na peça de Antonio José um Saramago. Não lhe mudou elle o essencial; trocando-lhe o nome, obedeceu ao systema de dar aos criados nomes burlescos. O de Jason, nos _Encantos de Medéa_, chama-se Sacatrapos; ha nas outras operas um Carangueijo, um Esfusiote, um Chichisbéu. São nomes, não valem mais que nomes. Nem Molière chamou Dandin ao principal personagem de uma de suas comedias sinão para o caracterisar desde logo de um modo jovial; não pretendeu outra cousa. Comtudo, a observação em relação a Antonio José tem o valor de um rasgo significativo. Cotejando o _Amphytrião_ de Antonio José com os de seus antecessores, vê-se o que elle imitou dos modelos, e o que de sua casa introduziu. Já disse que no principal os seguiu a todos; mas nem sempre soube escolher, e darei disso um exemplo claro. Camões, que não sendo poeta comico, era todavia homem de tacto e gosto, corrigiu, antes de Molière, o desenlace do _Amphytrião_ de Plauto. Na comedia deste, logo depois de explicar Jupiter os equivocos da situação e de annunciar ao marido de Alcmena que o filho desta é seu, mostra-se Amphytrião inteiramente satisfeito e glorioso com o desenlace. Camões supprimiu tão singular contentamento, e o mesmo fez Molière; em ambos os poetas Amphytrião ouve silencioso as declarações do pae dos deuses, sem que Alcmena assista a ellas. Antonio José não só não seguiu nessa parte os modelos recentes, mas até carregou a mão sobre o que imitou de Plauto. A alegria do seu Amphytrião e da sua Alcmena é tão franca, tamanho é o alvoroço dos dous esposos, que realmente chega a offender as leis da verosimilhança, ainda tratando-se de um caso divino. Neste ponto Antonio José foi antes inadvertido do que obrigado do gosto publico. Outro caso. Nas comedias anteriores não ha nenhum logar em que Alcmena veja ao mesmo tempo os dois Amphytriões, e isto não só era necessario para prolongar e justificar os equivocos, mas até o exigia a verosimilhança, porque, desde que Alcmena chegasse a ver juntos os dous exemplares exactos do marido, saía da boa fé que serve de fundamento á sua illusão, para cair no maravilhoso e no inextricavel. E é justamente o que acontece na comedia do judeu. Vamos agora ao que o judeu imitou directamente de Molière. Ha na comedia daquelle um caracter, o de Cornucopia, mulher de Saramago, que não tem equivalente na de Plauto, nem na de Camões, e que só na de Molière existe. «Molière (é observação de La Harpe), fazendo de Cleanthis mulher de Sosias, inventou uma situação parallela á de Amphytrião e Alcmena, dando-lhe porém differente aspecto; Cleanthis pertence ao numero das esposas que, por serem honestas, cuidam ter o direito de ser insupportaveis». Ora bem, a situação e o caracter de Cleanthis transportou-os o judeu para o seu _Amphytrião_, e não se póde dizer encontro fortuito, senão deliberado proposito. Basta cotejal-os com espirito advertido; a differença é de tom, de estylo; substancialmente, a invenção é a mesma; as proprias idéas reproduzem-se ás vezes na obra do judeu. Assim, logo na scena em que Mercurio transformado em Saramago (Sosias) encontra a mulher deste, achamos o traço commum aos dois poetas. Na comedia de Molière: CLEANTHIS Regarde, traitre, Amphytrion; Vois comme pour Alcmène il étale de flamme; Et rougis là-dessus du peu de passion Que tu témoignes pour ta femme. MERCURIO Hé! mon Dieu! Cléanthis, ils sont encore amants. Il est certain âge où tout passe; Et ce qui leur sied bien dans ces commencements, En nous, vieux mariés, aurait mauvaise grâce. Il nous ferait beau voir, attachés face à face, A pousser les beaux sentiments! CLEANTHIS Mérites-tu, pendard, cet insigne bonheur De te voir pour épouse une femme d'honneur? MERCURIO Mon Dieu! tu n'es que trop honnête; Ce grand honneur ne me vaut rien. Ne sois point si femme de bien, Et me romps un peu moins la tête. Agora Antonio José: CORNUCOPIA Tambem nosso amo trazia bastante fome, e comtudo está dizendo á nossa ama tanta cousa galantinha que faria derreter uma pedra MERCURIO Com que é o mesmo nossos amos do que nós? Elles casadinhos de um anno, e nós ha um seculo? Elles senhores e rapazes, e nós velhos e moços?[1] Elles dous jasmins e nós dous lagartos? E finalmente elles com amor, e nós, ou pelo menos eu, sem nenhum? [1] Criados. CORNUCOPIA Ora o certo é que peior é fazer festa a villões ruins; por estas, que se tu conheceras a mulher que tens, que outra cousa fôra; talvez que se eu fôra alguma dessas bonecrinhas enfeitadas que me quizeras mais; porém a culpa tenho eu em não aceitar o que me davam nas tuas costas. MERCURIO Pois ainda estás em tempo... Trata-se, como se vê, de um caracter e de uma situação integralmente transcriptos, embora de outro geito, cedendo o poeta aos seus habitos literarios, á sua indole e ao seu meio. Nem é sómente na introducção do caracter de Cornucopia, e na situação dos dous personagens, que Antonio José revela ter deante de si ou na memoria a peça de Molière, ha ainda outro vestigio; ha uma idéa na scena em que Jupiter se despede de Alcmena,--idéa que o judeu expressa deste modo: ALCMENA Este amor nasce da obrigação. JUPITER Pois quizera que esta fineza nascera mais do teu amor que da tua obrigação. ALCMENA A obrigação de amar ao esposo supera toda a obrigação. JUPITER Pois mais devera que me quizeras como a amante que como a esposo. ALCMENA Não sei fazer esta differença, pois não posso amar-te como a esposa, sem que te ame como a amante. Na comedia de Molière: JUPITER En moi, belle et charmante Alcmène, Vous voyez un mari, vous voyez un amant; Mais l'amant seul me touche, à parler franchement; Et je sens près de vous que le mari me gêne. Cet amant, de vos vœux jaloux au dernier point, Souhaite qu'à lui seul votre amour s'abandonne. ALCMENA Je ne sépare point ce qu'unissent les dieux; Et l'époux et l'amant me sont fort précieux. Se, neste ponto, já se não trata de uma situação, de um caracter novo, mas de uma idéa entrelaçada no dialogo, importa repetir que, ainda imitando ou recordando, o judeu se conserva fiel á sua physionomia literaria; póde ir buscar a especiaria alheia, mas ha de ser para temperal-a com o molho da sua fabrica. Dessa inclinação ao baixo-comico achamos outro exemplo na _Esopaida_, cujo assumpto fôra tratado, antes delle, por Boursault. O caracter tradicional de Esopo era pouco apropriado á comedia: é um moralista, um autor de apologos, mas Boursault trouxe-o assim mesmo para a scena, unico modo de lhe conservar a côr original. O Esopo de Antonio José parece antes um exemplar apurado daquelles lacaios argutos e atrevidos da comedia classica; salvo dous ou tres logares, é outro genero de Sacatrapos ou Chichisbéo; figura alli com agudezas e trocadilhos. Ha destes extremamente bufões, como o da bacia das almas, e disso e de pouco mais se compõe a philosophia de Esopo. Não obstante essa côr geral, notam-se alli toques de bom comico, embora leves e a espaços. Ha tambem, e principalmente, a veia satyrica, na scena que quasi todos os seus biographos transcrevem,--a das theses dos philosophos, scena extremamente chistosa, e que o proprio Diniz, com toda a sua veia do _Hyssope_ e do _Falso Heroismo_, não sei se chegaria a fazer mais acabada. Compare-se essa scena com a da invasão do Parnaso pelos maus poetas, na _Vida de D. Quixote_, e ver-se-ha que havia no talento de Antonio José uma forte dóse de satyra,--o que, de certa maneira, lhe diminuia a força comica. Nessas duas peças é, aliás, sensivel a habilidade theatral do poeta, que não tinha propriamente uma acção em nenhuma dellas, e, não obstante, logrou condensar a vida dos episodios, manter a unidade do interesse e angariar o applauso publico. Accresce que o seu D. Quixote não tem o defeito capital do seu Esopo; o poeta soube dar-lhe alguns toques da ingenuidade sublime, que caracterisa o typo de Cervantes: é o que se vê logo, na exposição, quando D. Quixote responde ao barbeiro acerca da armada que se prepara para combater o turco:--«Para que se cançam com tantas machinas? diz elle. Eu lhes déra um bom arbitrio com que, em menos de uma hora, vençam quantas armadas e armadilhas o turco tiver.» É ocioso dizer que o arbitrio seria a cavallaria andante. De todas as comedias, porém, a que goza as honras da primazia, é a das _Guerras do Alecrim e Mangerona_, e com razão; é a mais acabada e a mais comica. Tem o gosto do tempo, e até um resaibo da maneira de Calderon, que de si mesmo escrevia: Es comedia de Don Pedro Calderon, d'onde hade haber, Por fuerza, amante escondido Y rebozada mujer. Ha alli com effeito mulheres rebuçadas e amantes escondidos, e tanta vida como nas peças de Calderon. Não trato aqui do facto que poderia ter dado logar á obra do judeu, nem das duvidas de Costa e Silva sobre se os dois _ranchos_ do _alecrim_ e da _mangerona_ existiam antes da comedia, ou se esta os fez nascer; é investigação que não vale a pena de um minuto, e aliás o texto do poeta é claro. Em tudo se avantaja o _Alecrim_ e _mangerona_, até na linguagem, que é ahi muito menos obscena que nas outras, differença que se póde attribuir ao progresso do talento, porquanto já no _Labyrintho de Creta_ se dá o mesmo phenomeno. Não direi, como Garrett, que essa peça teria hoje todo o valor de uma comedia historica; mas assim mesmo, quem lhe vê as figuras, a seculo e meio de distancia, parece contemplar uma gravura em que ellas conservam as feições e o vestuario do tempo,--os namorados pobres, o velho avarento que arde por se ver livre das sobrinhas, e que, ao annunciarem-lhe a chegada do pretendente provinciano, manda deitar «mais um ovo nos espinafres,» D. Tiburcio, as duas damas, o Semicupio e a velha Fagundes, todo o pessoal da antiga farça. Superior ás outras composições, como estylo e originalidade, não menos o é como viveza, graça e movimento: e, se a farça domina, não é tanto que não appareça a comedia. Basta apontar, por exemplo, a scena da consulta medica, por occasião do desastre de D. Tiburcio, que é uma das melhores do theatro do judeu, e não ficaria vexada si a puzessemos ao lado das de Molière e Gil Vicente. Para não faltar nada, ha tambem aphorismos latinos, e até uma copla latina, digna de Molière. Podemos considerar o _Alecrim e Mangerona_ como uma das melhores comedias do seculo XVIII. Ler o _Alecrim e Mangerona_, o _Amphytrião_, a _Esopaida_ e o _D. Quixote_, é avaliar todo o poeta, com suas qualidades boas e más, com o geito do seu espirito e influencia do seu tempo. Nicolau Luiz, Figueiredo, Diniz e Garção, no mesmo seculo, tiveram talvez mais intenção comica do que Antonio José, mas os meios deste eram maiores, possuiam outra virtualidade, outra espontaneidade, outra abundancia. Dir-se-ha que, se a Inquisição o deixára viver, Antonio José produziria alguma obra de esphera superior? Repito: não creio que elle subisse muito acima do _Alecrim e Mangerona_; iria talvez ao ponto de fazer alguma cousa parecida com o _Avaro_, mas não faria todo o _Avaro_. Agora, a seculo e meio de distancia, podemos affirmar que Antonio José foi um destino decapitado. Qualquer que fosse a natureza do seu engenho, é fóra de duvida que o auto da fé em que elle pereceu, devorou com a mesma flamma assaz de paginas alegres e vivazes. A prova de que o theatro poderia ainda esperar muito de Antonio José, está na comparação das obras delle com a vida delle. Era um christão novo, como tal suspeitado e perseguido; aos vinte e um annos padeceu um primeiro processo, e sabe-se que terriveis eram os processos inquisitoriaes; basta dizer que o delinquente revelou todos os seus complices em judaismo, com a maior franqueza e minuciosidade, o que se póde explicar pela tenra edade do poeta, mas tambem pelo terror que o tribunal infundia, não menos que pela exhortação mansa com que os inquisidores extorquiam a confissão de todos os erros e a denuncia de todos os complices,--sem prejuizo, aliás, do carcere e da polé. Pois bem, não obstante os vestigios e as lembranças desse primeiro acto da Inquisição, não obstante o espectaculo do que padeciam os seus, as operas de Antonio José trazem o sabor de uma mocidade imperturbavelmente feliz, a facecia grossa e petulante, tal como lh'a pedia o paladar das platéas, nenhum vislumbre do episodio tragico, salvo uns versos do _Amphytrião_ que se creem, (e, quanto a mim, sem outro fundamento além da conjectura) como applicaveis a elle mesmo. Mas ainda suppondo que a conjectura tenha razão, admittindo mais que a allegoria da justiça na _Vida de D. Quixote_ seja o resumo das queixas pessoaes do poeta (supposição tão fragil como aquella), a verdade é que os successos da vida delle não influiram, não diminuiram a força nativa do talento, nem lhe torceram a natureza, que estava muito longe da hypocondria. Molière, que, se nem sempre teve flores no caminho, não conheceu o infimo dos padecimentos de Antonio José, foi o creador de Alceste; o nosso judeu, dado que tivesse a mesma intensidade de talento, não escolheria nunca o assumpto do _Misanthropo_. Nisto, menos que em nenhuma outra cousa, imitaria elle o grande mestre. Não lhe fossem propôr graves problemas, nem maximas profundas, nem os caracteres, nem as altas observações que formam o argumento das comedias de outra esphera, nem sobretudo as melancolias de Molière e Shakespeare. O nosso judeu era a farça, a genuina farça, sem outras pretenções, sem mais remotas vistas que os limites do seu bairro e do seu tempo. Certo, eu posso hoje, á fina força, arrancar alguma idéa inicial das operas do judeu; por exemplo, ao ver nos _Encantos de Medéa_ a dedicação da feiticeira de Colchos, que tráe os deveres filiaes e põe todas as suas artes ao serviço de Jason, ao ponto de lhe entregar o vellocino e ao ver que, apezar de tudo isto, o principe foge com Creusa, posso, digo eu, attribuir ao poeta a intenção de que o reconhecimento não é o caminho do amor e que um coração póde ser legitimamente ingrato. Seria logico, seria bem deduzido da acção, mas não passaria de obra da critica, inteiramente alheia á intenção do poeta, que achou no assumpto uma farça de tramoias e nada mais. Esta é a ultima conclusão que rigorosamente se póde tirar do poeta. Elle não imitou, não chegaria a imitar Molière, ainda que repetisse as transcripções que fez no _Amphytrião_; tinha originalidade, embora a influencia das operas italianas. Convenhamos que era um engenho sem disciplina, nem gosto, mas caracterisco e pessoal. Não consultes medico PESSOAS D. LEOCADIA D. ADELAIDE D. CARLOTA CAVALCANTE MAGALHAES Um gabinete em casa de Magalhães, na Tijuca. SCENA I MAGALHÃES, D. ADELAIDE Magalhães lê um livro, D. Adelaide folhea um livro de gravuras. MAGALHÃES Esta gente não terá vindo? D. ADELAIDE Parece que não. Já sairam ha um bom pedaço; felizmente o dia está fresco. Titia estava tão contente ao almoço! E hontem? Você viu que risadas que ella dava, ao jantar, ouvindo o Dr. Cavalcante? E o Cavalcante serio. Meu Deus, que homem triste! que cara de defunto! MAGALHÃES Coitado do Cavalcante! Mas que quererá ella commigo? Falou-me em um obsequio. D. ADELAIDE Sei o que é. MAGALHÃES Que é? D. ADELAIDE Por ora é segredo. Titia quer que levemos Carlota comnosco. MAGALHÃES Para a Grecia? D. ADELAIDE Sim, para a Grecia. MAGALHÃES, Talvez ella pense que a Grecia é em Pariz. Eu acceitei a legação de Athenas porque não me dava bem em Guatemala, e não ha outra vaga na America. Nem é só por isso; você tem vontade de ir acabar a lua de mel na Europa... Mas então Carlota vae ficar comnosco? D. ADELAIDE É só algum tempo. Carlota gostava muito de um tal Rodrigues, capitão de engenharia, que casou com uma viuva hespanhola. Soffreu muito, e ainda agora anda meia triste; titia diz que ha de cural-a. MAGALHÃES, _rindo_ É a mania della. D. ADELAIDE, _rindo_ Só cura molestias moraes. MAGALHÃES A verdade é que nos curou; mas, por muito que lhe paguemos em gratidão, fala-nos sempre da nossa antiga molestia. «Como vão os meus doentesinhos? Não é verdade que estão curados?» D. ADELAIDE Pois falemos-lhe nós da cura, para lhe dar gosto. Agora quer curar a filha. MAGALHÃES Do mesmo modo? D. ADELAIDE Por ora não. Quer mandal-a á Grecia para que ella esqueça o capitão de engenharia. MAGALHÃES Mas, em qualquer parte se esquece um capitão de engenharia. D. ADELAIDE Titia pensa que a vista das ruinas e dos costumes differentes cura mais depressa. Carlota está com dezoito para dezenove annos; titia não a quer casar antes dos vinte. Desconfio que já traz um noivo em mente, um moço que não é feio, mas tem o olhar espantado. MAGALHÃES É um desarranjo para nós; mas, emfim, póde ser que lhe achemos lá na Grecia algum descendente de Alcibiades que a preserve do olhar espantado. D. ADELAIDE Ouço passos. Ha de ser titia... MAGALHÃES Justamente! Continuemos a estudar a Grecia. (_Sentam-se outra vez, Magalhães lendo, D. Adelaide folheando o livro de vistas._) SCENA II OS MESMOS E D. LEOCADIA D. LEOCADIA (_pára á porta, desce pé ante pé, e mette a cabeça entre os dous_.) Como vão os meus doentesinhos? Não é verdade que estão curados? MAGALHÃES, _aparte_ É isto todos os dias. D. LEOCADIA Agora estudam a Grecia; fazem muito bem. O paiz do casamento é que vocês não precisaram estudar. D. ADELAIDE A senhora foi a nossa geographia, foi quem nos deu as primeiras licções. D. LEOCADIA Não diga licções, diga remedios. Eu sou doutora, eu sou medica. Este (_indicando Magalhães_), quando voltou de Guatemala, tinha um ar exquisito; perguntei-lhe se queria ser deputado, disse-me que não; observei-lhe o nariz, e vi que era um triste nariz solitario... MAGALHÃES Já me disse isto cem vezes. D. LEOCADIA, _voltando-se para elle e continuando_ Esta (_designando Adelaide_) andava hypocondriaca. O medico da casa receitava pilulas, capsulas, uma porção de tolices que ella não tomava, porque eu não deixava; o medico devia ser eu. D. ADELAIDE Foi uma felicidade. Que é que se ganha em engolir pilulas? D. LEOCADIA Apanham-se molestias. D. ADELAIDE Uma tarde, fitando eu os olhos de Magalhães... D. LEOCADIA Perdão, o nariz. ADELAIDE Vá lá. A senhora disse-me que elle tinha o nariz bonito, mas muito solitario. Não entendi; dous dias depois, perguntou-me se queria casar, eu não sei que disse, e acabei casando. D. LEOCADIA Não é verdade que estão curados? MAGALHÃES Perfeitamente. D. LEOCADIA A proposito, como irá o Dr. Cavalcante? Que exquisitão! Disse-me hontem que a cousa mais alegre do mundo era um cemiterio. Perguntei-lhe se gostava aqui da Tijuca, respondeu-me que sim, e que o Rio de Janeiro era uma grande cidade. «É a segunda vez que a vejo, disse elle; eu sou do Norte. É uma grande cidade, José Bonifacio é um grande homem, a rua do Ouvidor um poema, o chafariz da Carioca um bello chafariz, o Corcovado, o gigante de pedra, Gonçalves Dias, os _Tymbiras_, o Maranhão...» Embrulhava tudo a tal ponto que me fez rir. Elle é doudo? MAGALHÃES Não. D. LEOCADIA A principio, cuidei que era. Mas o melhor foi quando se serviu o perú. Perguntei-lhe que tal achava o perú. Ficou pallido, deixou cair o garfo, fechou os olhos e não me respondeu. Eu ia chamar a attenção de vocês, quando elle abriu os olhos e disse com voz surda: «D. Leocadia, eu não conheço o Perú...» Eu, espantada, perguntei: «Pois não está comendo...?» «Não falo desta pobre ave; falo-lhe da republica.» MAGALHÃES Pois conhece a republica. D. LEOCADIA Então mentiu. MAGALHÃES Não, porque nunca lá foi. D. LEOCADIA (_a D.Adelaide_) Mau! seu marido parece que tambem está virando o juizo. (_A Magalhães_) Conhece então o Perú, como vocês estão conhecendo a Grecia... pelos livros. MAGALHÃES Tambem não. D. LEOCADIA Pelos homems? MAGALHÃES Não, senhora. D. LEOCADIA Então pelas mulheres? MAGALHÃES Nem pelas mulheres. D. LEOCADIA Por uma mulher? MAGALHÃES Por uma mocinha, filha do ministro do Perú em Guatemala. Já contei a historia a Adelaide. (_D. Adelaide senta-se folheando o livro de gravuras_.) D. LEOCADIA, _senta-se_ Ouçamos a historia. É curta? MAGALHÃES Quatro palavras. Cavalcante estava em commissão do nosso governo, e frequentava o corpo diplomatico, onde era muito bem visto. Realmente, não se podia achar creatura mais dada, mais expansiva, mais estimavel. Um dia começou a gostar da peruana. A peruana era bella e alta, com uns olhos admiraveis. Cavalcante, dentro de pouco, estava doudo por ella, não pensava em mais nada, não falava de outra pessoa. Quando a via ficava extatico. Se ella gostava delle, não sei; é certo que o animava, e já se falava em casamento. Puro engano! Dolores voltou para o Perú, onde casou com um primo, segundo me escreveu o pae. D. LEOCADIA Elle ficou desconsolado, naturalmente. MAGALHÃES Ah! não me fale! Quiz matar-se; pude impedir esse acto de desespero, e o desespero desfez-se em lagrimas. Caiu doente, uma febre que quasi o levou. Pediu dispensa da commissão, e, como eu tinha obtido seis mezes de licença, voltámos juntos. Não imagina o abatimento em que ficou, a tristeza profunda; chegou a ter as idéas baralhadas. Ainda agora, diz alguns disparates, mas emenda-se logo e ri de si mesmo. D. LEOCADIA Quer que lhe diga? Já hontem suspeitei que era negocio de amores; achei-lhe um riso amargo... Terá bom coração? MAGALHÃES Coração de ouro. D. LEOCADIA Espirito elevado? MAGALHÃES Sim, senhora. D. LEOCADIA Espirito elevado, coração de ouro, saudades... Está entendido. MAGALHÃES Entendido o que? D. LEOCADIA Vou curar o seu amigo Cavalcante. De que é que vocês se espantam? D. ADELAIDE De nada. MAGALHÃES De nada, mas... D. LEOCADIA Mas que? MAGALHÃES Parece-me... D. LEOCADIA Não parece nada; vocês são uns ingratos. Pois se confessam que eu curei o nariz de um e a hypocondria do outro, como é que põem em duvida que eu possa curar a maluquice do Cavalcante? Vou cural-o. Elle virá hoje? D. ADELAIDE Não vem todos os dias; ás vezes passa-se uma semana. MAGALHÃES Mora perto daqui; vou escrever-lhe que venha, e, quando chegar, dir-lhe-hei que a senhora é o maior medico do seculo; cura o moral... Mas, minha tia, devo avisal-a de uma cousa; não lhe fale em casamento. D. LEOCADIA Oh! não! MAGALHÃES Fica furioso quando lhe falam em casamento; responde que só se ha de casar com a morte... A senhora exponha-lhe... D. LEOCADIA Ora, meu sobrinho, vá ensinar o _padre-nosso_ ao vigario. Eu sei o que elle precisa, mas quero estudar primeiro o doente e a doença. Já volto. MAGALHÃES Não lhe diga que eu é que lhe contei o caso da peruana... D. LEOCADIA Pois se eu mesma adivinhei que elle soffria do coração. (_Sae; entra Carlota._) SCENA III MAGALHÃES, D. ADELAIDE, D. CARLOTA D. ADELAIDE Bravo! está mais corada agora! D. CARLOTA Foi do passeio. D. ADELAIDE De que é que você gosta mais, da Tijuca ou da cidade? D. CARLOTA Eu por mim, ficava mettida aqui na Tijuca. MAGALHÃES Não creio. Sem bailes? sem theatro lyrico? D. CARLOTA Os bailes cançam, e não temos agora theatro lyrico. MAGALHÃES Mas, em summa, aqui ou na cidade, o que é preciso é que você ria; esse ar tristonho faz-lhe a cara feia. D. CARLOTA Mas eu rio. Ainda agora não pude deixar de rir vendo o Dr. Cavalcante. MAGALHÃES Porque? D. CARLOTA Elle passava ao longe, a cavallo, tão distrahido que levava a cabeça caida entre as orelhas do animal; ri da posição, mas lembrei-me que podia cair e ferir-se, e estremeci toda. MAGALHÃES Mas não caiu? CARLOTA Não. ADELAIDE Titia viu tambem? CARLOTA Mamãe ia-me falando da Grecia, do ceu da Grecia, dos monumentos da Grecia, do rei da Grecia; toda ella é Grecia, fala como se tivesse estado na Grecia. ADELAIDE Você quer ir comnosco para lá? CARLOTA Mamãe não ha de querer. ADELAIDE Talvez queira. (_Mostrando-lhe as gravuras do livro_) Olhe que bonitas vistas! Isto são ruinas. Aqui está uma scena de costumes. Olhe esta rapariga com um pote... MAGALHÃES, _á janella_ Cavalcante ahi vem. CARLOTA Não quero vel-o. ADELAIDE Porque? CARLOTA Agora que passou o medo, posso rir-me lembrando a figura que elle fazia. ADELAIDE Eu tambem vou. (_Saem as duas; Cavalcante apparece á porta, Magalhães deixa a janella._) SCENA IV CAVALCANTE e MAGALHÃES MAGALHÃES Entra. Como passaste a noite? CAVALCANTE Bem. Dei um bello passeio; fui até ao Vaticano e vi o papa. (_Magalhães olha espantado._) Não te assustes, não estou doudo. Eis o que foi: o meu cavallo ia para um lado e o meu espirito para outro. Eu pensava em fazer-me frade; então todas as minhas idéas vestiram-se de burel, e entrei a ver sobrepelizes e tochas; emfim, cheguei a Roma, apresentei-me á porta do Vaticano e pedi para ver o papa. No momento em que Sua Santidade appareceu, prosternei-me, depois estremeci, despertei e vi que o meu corpo seguira atraz do sonho, e que eu ia quasi caindo. MAGALHÃES Foi então que a nossa prima Carlota deu comtigo ao longe. CAVALCANTE Tambem eu a vi, e, de vexado, piquei o cavallo. MAGALHÃES Mas, então ainda não perdeste essa idéa de ser frade? CAVALCANTE Não. MAGALHÃES Que paixão romanesca! CAVALCANTE Não, Magalhães; reconheço agora o que vale o mundo com as suas perfidias e tempestades. Quero achar um abrigo contra ellas; esse abrigo é o claustro. Não sairei nunca da minha cella, e buscarei esquecer deante do altar... MAGALHÃES Olha que vaes cair do cavallo! CAVALCANTE Não te rias, meu amigo! MAGALHÃES Não; quero só accordar-te. Realmente, estás ficando maluco. Não penses mais em semelhante moça. Ha no mundo milhares e milhares de moças eguaes á bella Dolores. CAVALCANTE Milhares e milhares? Mais uma razão para que eu me esconda em um convento. Mas é engano; ha só uma, e basta. MAGALHÃES Bem; não ha remedio se não entregar-te á minha tia. CAVALCANTE Á tua tia? MAGALHÃES Minha tia crê que tu deves padecer de alguma doença moral,--e adivinhou,--e fala de curar-te. Não sei se sabes que ella vive na persuasão de que cura todas as enfermidades moraes. CAVALCANTE Oh! eu sou incuravel! MAGALHÃES Por isso mesmo deves sujeitar-te aos seus remedios. Se te não curar, dar-te-ha alguma distracção, e é o que eu quero. (_Abre a charuteira, que está vazia_). Olha, espera aqui, lê algum livro; eu vou buscar charutos. (_Sae; Cavalcante pega num livro e senta-se._) SCENA V CAVALCANTE, D. CARLOTA, apparecendo ao fundo. D. CARLOTA Primo... (_Vendo Cavalcante_) Ah! perdão! CAVALCANTE (_erguendo-se_) Perdão de que? D. CARLOTA Cuidei que meu primo estava aqui; vim buscar um livro de gravuras de prima Adelaide; está aqui... CAVALCANTE A senhora viu-me passar a cavallo, ha uma hora, n'uma posição incommoda e inexplicavel. D. CARLOTA Perdão, mas... CAVALCANTE Quero dizer-lhe que eu levava na cabeça uma idéa séria, um negocio grave. D. CARLOTA Creio. CAVALCANTE Deus queira que nunca possa entender o que era! Basta crer. Foi a distracção que me deu aquella postura inexplicavel. Na minha familia quasi todos são distrahidos. Um dos meus tios morreu na guerra do Paraguay, por cousa de uma distracção; era capitão de engenharia... D. CARLOTA, _perturbada_. Oh! não me fale! CAVALCANTE Porque? Não póde tel-o conhecido. D. CARLOTA Não, senhor; desculpe-me, sou um pouco tonta. Vou levar o livro á minha prima. CAVALCANTE Peço-lhe perdão, mas... D. CARLOTA Passe bem. (_Vae até á porta._) CAVALCANTE Mas, eu desejava saber... D. CARLOTA Não, não, perdôe-me (_Sae._) SCENA VI CAVALCANTE, só Não comprehendo; não sei se a offendi. Falei no tio João Pedro, que morreu no Paraguay, antes della nascer... SCENA VII CAVALCANTE, D. LEOCADIA D. Leocadia, _ao fundo, aparte_. Está pensando (_Desce._) Bom dia, Dr. Cavalcante! CAVALCANTE Como passou, minha senhora? D. LEOCADIA Bem, obrigada. Então meu sobrinho deixou-o aqui só? CAVALCANTE Foi buscar charutos, já volta. D. LEOCADIA Os senhores são muito amigos. CAVALCANTE Somos como dous irmãos. D. LEOCADIA Magalhães é um coração de ouro, e o senhor parece-me outro. Acho-lhe só um defeito, doutor... Desculpe-me esta franqueza de velha; acho que o senhor fala trocado. CAVALCANTE Disse-lhe hontem algumas tolices, não? D. LEOCADIA Tolices, é muito; umas palavras sem sentido. CAVALCANTE Sem sentido, insensatas, vem a dar na mesma. D. LEOCADIA, _pegando-lhe nas mãos_. Olhe bem para mim (_Pausa._) Suspire. (_Cavalcante suspira._) O senhor está doente; não negue que está doente,--moralmente, entenda-se; não negue! (_Solta-lhe as mãos._) CAVALCANTE Negar seria mentir. Sim, minha senhora, confesso que tive um grandissimo desgosto... D. LEOCADIA Jogo de praça? CAVALCANTE Não, senhora. D. LEOCADIA Ambições politicas mallogradas? CAVALCANTE Não conheço politica. D. LEOCADIA Algum livro mal recebido pela imprensa? CAVALCANTE Só escrevo cartas particulares. D. LEOCADIA Não atino. Diga francamente; eu sou medico de enfermidades moraes, e posso cural-o. Ao medico diz-se tudo. Ande, fale, conte-me tudo, tudo, tudo. Não se trata de amores?... CAVALCANTE, _suspirando_. Trata-se justamente de amores. D. LEOCADIA Paixão grande? CAVALCANTE Oh! immensa! D. LEOCADIA Não quero saber o nome da pessoa, não é preciso. Naturalmente, bonita? CAVALCANTE Como um anjo! D. LEOCADIA O coração também era de anjo? CAVALCANTE Póde ser, mas de anjo mau. D. LEOCADIA Uma ingrata... CAVALCANTE Uma perversa! D. LEOCADIA Diabolica... CAVALCANTE Sem entranhas! D. LEOCADIA Vê que estou adivinhando. Console-se; uma creatura dessas não acha casamento. CAVALCANTE Já achou! D. LEOCADIA Já? CAVALCANTE Casou, minha senhora; teve a crueldade de casar com um primo. D. LEOCADIA Os primos quasi que não nascem para outra cousa. Diga-me, não procurou esquecer o mal nas folias proprias de rapazes? CAVALCANTE Oh! não! Meu unico prazer é pensar nella. D. LEOCADIA Desgraçado! Assim nunca ha de sarar. CAVALCANTE Vou tratar de esquecel-a. D. LEOCADIA De que modo? CAVALCANTE De um modo velho, alguns dizem que já obsoleto e archaico. Penso em fazer-me frade. Ha de haver em algum recanto do mundo um claustro em que não penetre sol nem lua. D. LEOCADIA Que illusão! Lá mesmo achará a sua namorada. Ha de vel-a nas paredes da cella, no tecto, no chão, nas folhas do breviario. O silencio far-se-ha boca da moça, a solidão será o seu corpo. CAVALCANTE Então estou perdido. Onde acharei paz e esquecimento? D. LEOCADIA Póde ser frade sem ficar no convento. No seu caso o remedio naturalmente indicado é ir prégar... na China, por exemplo. Va prégar aos infieis na China. Paredes de convento são mais perigosas que olhos de chinezas. Ande, vá pregar na China. No fim de dez annos está curado. Volte, metta-se no convento e não achará lá o diabo. CAVALCANTE Está certa que na China... D. LEOCADIA Certissima. CAVALCANTE O seu remedio é muito amargo! Porque é que me não manda antes para o Egypto? Também é paiz de infieis. D. LEOCADIA Não serve; é a terra daquella rainha... Como se chama? CAVALCANTE Cleopatra? Morreu ha tantos seculos! D. LEOCADIA Meu marido disse que era uma desmiolada. CAVALCANTE Seu marido era, talvez, um erudito. Minha senhora, não se aprende amor nos livros velhos, mas nos olhos bonitos; por isso, estou certo de que elle adorava a V. Ex. D. LEOCADIA Ah! ah! Já o doente começa a adular o medico. Não, senhor, ha de ir á China. Lá ha mais livros velhos que olhos bonitos. Ou não tem confiança em mim? CAVALCANTE Oh! tenho, tenho. Mas ao doente é permittido fazer uma careta antes de engolir a pilula. Obedeço; vou para a China. Dez annos, não? D. LEOCADIA, _levanta-se_. Dez ou quinze, se quizer; mas antes dos quinze está curado. CAVALCANTE Vou. D. LEOCADIA Muito bem. A sua doença é tal que só com remedios fortes. Vá; dez annos passam depressa. CAVALCANTE Obrigado, minha senhora. D. LEOCADIA Até logo. CAVALCANTE Não, minha senhora, vou já. D. LEOCADIA Já para a China! CAVALCANTE Vou arranjar as malas, e amanhã embarco para a Europa; vou a Roma, depois sigo immediatamente para a China. Até daqui a dez annos. (_Estende-lhe a mão._) D. LEOCADIA Fique ainda uns dias... CAVALCANTE Não posso. D. LEOCADIA Gosto de ver essa pressa; mas, emfim, póde esperar ainda uma semana. CAVALCANTE Não, não devo esperar. Quero ir ás pilulas, quanto antes; é preciso obedecer religiosamente ao medico. D. LEOCADIA Como eu gosto de ver um doente assim! O senhor tem fé no medico. O peior é que daqui a pouco, talvez, não se lembre delle. CAVALCANTE Oh! não! Hei de lembrar-me sempre, sempre! D. LEOCADIA No fim de dous annos escreva-me; informe-me sobre o seu estado, e talvez eu o faça voltar. Mas, não minta, olhe lá; se já tiver esquecido a namorada, consentirei que volte. CAVALCANTE Obrigado. Vou ter com seu sobrinho, e depois vou arranjar as malas. D. LEOCADIA Então não volta mais a esta casa? CAVALCANTE Virei daqui a pouco, uma visita de dez minutos, e depois desço, vou tomar passagem no paquete de amanhã. D. LEOCADIA Jante, ao menos, comnosco. CAVALCANTE Janto na cidade. D. LEOCADIA Bem, adeus; guardemos o nosso segredo. Adeus, Dr. Cavalcante. Creia-me: o senhor merece estar doente. Ha pessoas que adoecem sem merecimento nenhum; ao contrario, não merecem outra cousa mais que uma saude de ferro. O senhor nasceu para adoecer; que obediencia ao medico! que facilidade em engolir todas as nossas pilulas! Adeus! CAVALCANTE Adeus, D. Leocadia. (_Sae pelo fundo._) SCENA VIII D. LEOCADIA, D. ADELAIDE D. LEOCADIA Com dous annos de China está curado. (_Vendo entrar Adelaide_) O Dr. Cavalcante saiu agora mesmo. Ouviste o meu exame medico? D. ADELAIDE Não. Que lhe pareceu? D. LEOCADIA Cura-se. D. ADELAIDE De que modo? D. LEOCADIA Não posso dizer; é segredo profissional. D. ADELAIDE Em quantas semanas fica bem? D. LEOCADIA Em dez annos. D. ADELAIDE Misericordia! Dez annos! D. LEOCADIA Talvez dous; é moço, é robusto, a natureza ajudará a medicina, comquanto esteja muito atacado. Ahi vem teu marido. SCENA IX OS MESMOS, MAGALHÃES MAGALHÃES, _a D. Leocadia_. Cavalcante disse-me que vae embora; eu vim correndo saber o que é que lhe receitou. D. LEOCADIA Receitei-lhe um remedio energico, mas que ha de salval-o. Não são consolações de cacaracá. Coitado! Soffre muito, está gravemente doente; mas, descancem, meus filhos, juro-lhes, á fé do meu gráo, que hei de cural-o. Tudo é que me obedeça, e este obedece. Oh! aquelle crê em mim. E vocês, meus filhos? Como vão os meus doentesinhos? Não é verdade que estão curados? (_Sae pelo fundo._) SCENA X MAGALHÃES, D. ADELAIDE MAGALHÃES Tinha vontade de saber o que é que ella lhe receitou. D. ADELAIDE Não falemos disso. MAGALHÃES Sabes o que foi? D. ADELAIDE Não; mas titia disse-me que a cura se fará em dez annos. (_Espanto de Magalhães._) Sim, dez annos; talvez dous, mas a cura certa é em dez annos. MAGALHÃES, _atordoado_. Dez annos! D. ADELAIDE Ou dous. MAGALHÃES Ou dous? D. ADELAIDE Ou dez. MAGALHÃES Dez annos! Mas é impossivel! Quiz brincar comtigo. Ninguem leva dez annos a sarar; ou sára antes ou morre. D. ADELAIDE Talvez ella pense que a melhor cura é a morte. MAGALHÃES Talvez. Dez annos! D. ADELAIDE Ou dous; não esqueças. MAGALHÃES Sim, ou dous; dous annos é muito, mas, ha casos... Vou ter com elle. D. ADELAIDE Se titia quiz enganar a gente, não é bom que os estranhos saibam. Vamos falar com ella, talvez que, pedindo muito, ella diga a verdade. Não leves essa cara assustada; é preciso falar-lhe naturalmente, com indifferença. MAGALHÃES Pois vamos. D. ADELAIDE Pensando bem, é melhor que eu vá só; entre mulheres... MAGALHÃES Não; ella continuará a zombar de ti; vamos juntos, estou sobre brazas. D. ADELAIDE Vamos. MAGALHÃES Dez annos! D. ADELAIDE Ou dous. (_Saem pelo fundo._) SCENA XI D. CARLOTA, entrando pela direita. Ninguem! Afinal foram-se! Esta casa anda hoje cheia de mysterios. Ha um quarto de hora quiz vir aqui, e prima Adelaide disse-me que não, que se tratavam aqui negocios graves. Pouco depois levantou-se e saiu; mas antes disso contou-me que mamãe é que quer que eu vá para a Grecia. A verdade é que todos me falam de Athenas, de ruinas, de danças gregas, da Acropole... Creio que é Acropole que se diz. (_Pega no livro que Magalhães estivera lendo, senta-se, abre e lê_) «Entre os proverbios gregos, ha um muito fino: Não consultes medico; consulta alguem que tenha estado doente.» Consultar alguem que tenha estado doente! Não sei que possa ser. (_Continua a ler em voz baixa._) SCENA XII D. CARLOTA, CAVALCANTE CAVALCANTE, _ao fundo_. D. Leocadia! (_Entra e fala de longe a Carlota, que está de costas._) Quando eu ia a sair, lembrei-me... D. CARLOTA Quem é? (_Levanta-se._) Ah! doutor! CAVALCANTE Desculpe-me, vinha falar á senhora sua mãe para lhe pedir um favor. D. CARLOTA Vou chamal-a. CAVALCANTE Não se incommode; falar-lhe-hei logo. Saberá por acaso se a senhora sua mãe conhece algum cardeal em Roma? D. CARLOTA Não sei, não, senhor. CAVALCANTE Queria pedir-lhe uma carta de apresentação; voltarei mais tarde (_Corteja, sae e pára._) Ah! aproveito a occasião para lhe perguntar ainda uma vez em que é que a offendi? D. CARLOTA O senhor nunca me offendeu. CAVALCANTE Certamente que não; mas ainda ha pouco, falando-lhe de um tio meu, que morreu no Paraguay, tio João Pedro, capitão de engenharia... D. CARLOTA, _atalhando_. Porque é que o senhor quer ser apresentado a um cardeal? CAVALCANTE Bem respondido! Confesso que fui indiscreto com a minha pergunta. Já ha de saber que eu tenho distracções repentinas, e quando não caio no ridiculo, como hoje de manhã, caio na indiscreção. São segredos mais graves que os seus. É feliz, é bonita, póde contar com o futuro, emquanto que eu... Mas eu não quero aborrecel-a. O meu caso ha de andar em romances. (_Indicando o livro que ella tem na mão_) Talvez nesse. D. CARLOTA Não é romance. (_Dá-lhe o livro._) CAVALCANTE Não? (_Lê o titulo_) Como? Está estudando a Grecia? D. CARLOTA Estou. CAVALCANTE Vae para lá? D. CARLOTA Vou, com prima Adelaide. CAVALCANTE Viagem de recreio, ou vae tratar-se? D. CARLOTA Deixe-me ir chamar mamãe. CAVALCANTE Perdôe-me ainda uma vez; fui indiscreto, retiro-me. (_Dá alguns passos para sair._) D. CARLOTA Doutor! (_Cavalcante pára._) Não se zangue commigo; sou um pouco tonta, o senhor é bom... Cavalcante, _descendo_. Não diga que sou bom; os infelizes são apenas infelizes. A bondade é toda sua. Ha poucos dias que nos conhecemos, e já nos zangámos, por minha causa. Não proteste; a causa é a minha molestia. D. CARLOTA O senhor está doente? CAVALCANTE Mortalmente. D. CARLOTA Não diga isso! CAVALCANTE Ou gravemente, se prefere. D. CARLOTA Ainda é muito. E que molestia é? CAVALCANTE Quanto ao nome, não ha accordo: loucura, espirito romanesco e muitos outros. Alguns dizem que é amor. Olhe, está outra vez aborrecida commigo! D. CARLOTA Oh! não, não, não. (_Procurando rir._) É o contrario; estou até muito alegre. Diz-me então que está doente, louco... CAVALCANTE Louco de amor, é o que alguns dizem. Os autores divergem. Eu prefiro amor, por ser mais bonito, mas a molestia, qualquer que seja a causa, é cruel e terrivel. Não póde comprehender este _imbroglio_; peça a Deus que a conserva nessa boa e feliz ignorancia. Porque é que me está olhando assim? Quer talvez saber... D. CARLOTA Não, não quero saber nada. CAVALCANTE Não é crime ser curiosa. D. CARLOTA Seja ou não loucura, não quero ouvir historias como a sua. CAVALCANTE Já sabe qual é? D. CARLOTA Não. CAVALCANTE Não tenho direito de interrogal-a; mas ha já dez minutos que estamos neste gabinete, falando de cousas bem exquisitas para duas pessoas que apenas se conhecem. D. CARLOTA, _estendendo-lhe a mão_ Até logo. CAVALCANTE A sua mão está fria. Não se vá ainda embora; hão de achal-a agitada. Socegue um pouco, sente-se (_Carlota senta-se._) Eu retiro-me. D. CARLOTA Passe bem. CAVALCANTE Até logo. D. CARLOTA Volta logo? CAVALCANTE Não, não volto mais; queria enganal-a. D. CARLOTA Enganar-me porque? CAVALCANTE Porque já fui enganado uma vez. Ouça-me; são duas palavras. Eu gostava muito de uma moça que tinha a sua belleza, e ella casou com outro. Eis a minha molestia. D. CARLOTA, _erguendo-se_ Como assim? CAVALCANTE É verdade; casou com outro. D. CARLOTA, _indignada_ Que acção vil! CAVALCANTE Não acha? D. CARLOTA E ella gostava do senhor? CAVALCANTE Apparentemente; mas, depois vi que eu não era mais que um passatempo. D. CARLOTA, _animando-se aos poucos_ Um passatempo! Fazia-lhe juramentos, dizia-lhe que o senhor era a sua unica ambição, o seu verdadeiro Deus, parecia orgulhosa em contemplal-o por horas infinitas, dizia-lhe tudo, tudo, umas cousas que pareciam cair do ceu, e suspirava... CAVALCANTE Sim, suspirava, mas... D. CARLOTA, _muito animada_ Um dia abandonou-o, sem uma só palavra de saudade nem de consolação, fugiu e foi casar com uma viuva hespanhola! CAVALCANTE, _espantado_ Uma viuva hespanhola! D. CARLOTA Ah! tem muita razão em estar doente! CAVALCANTE Mas que viuva hespanhola é essa de que me fala? D. CARLOTA, _caindo em si_ Eu falei-lhe de uma viuva hespanhola? CAVALCANTE Falou. D. CARLOTA Foi engano... Adeus, sr. doutor. CAVALCANTE Espere um instante. Creio que me comprehendeu. Falou com tal paixão que os medicos não têm. Oh! como eu execro os medicos! principalmente os que me mandam para a China. D. CARLOTA O senhor vae para a China? CAVALCANTE Vou; mas não diga nada! foi sua mãe que me deu esta receita. D. CARLOTA A China é muito longe! CAVALCANTE Creio até que está fóra do mundo. D. CARLOTA Tão longe porque? CAVALCANTE Boa palavra essa. Sim, porque ir á China, se a gente póde sarar na Grecia? Dizem que a Grecia é muito efficaz para estas feridas; ha quem affirme que não ha melhor para as que são feitas pelos capitães de engenharia. Quanto tempo vae lá passar? D. CARLOTA Não sei. Um anno, talvez. CAVALCANTE Crê que eu possa sarar n'um anno? D. CARLOTA É possivel. CAVALCANTE Talvez sejam precisos dous,--dous ou tres. D. CARLOTA Ou tres. CAVALCANTE Quatro, cinco... D. CARLOTA Cinco, seis... CAVALCANTE Depende menos do paiz que da doença. D. CARLOTA Ou do doente. CAVALCANTE Ou do doente. Já a passagem do mar póde ser que me faça bem. A minha molestia casou com um primo. A sua (perdôe esta outra indiscreção; é a ultima) a sua casou com a viuva hespanhola. As hespanholas, mórmente viuvas, são detestaveis. Mas, diga-me uma cousa: se uma pessoa já está curada, que é que vae fazer á Grecia? D. CARLOTA Convalescer, naturalmente. O senhor, como ainda está doente, vae para a China. CAVALCANTE Tem razão. Entretanto, começo a ter medo de morrer... Pensou alguma vez na morte? D. CARLOTA Pensa-se nella, mas lá vem um dia em que a gente acceita a vida, seja como fôr. CAVALCANTE Vejo que sabe muita cousa. D. CARLOTA Não sei nada; sou uma tagarella, que o senhor obrigou a dar por páos e por pedras; mas, como é a ultima vez que nos vemos, não importa. Agora, passe bem. CAVALCANTE Adeus, D. Carlota! D. CARLOTA Adeus, doutor! CAVALCANTE Adeus. (_Dá um passo para a porta do fundo._) Talvez eu vá a Athenas; não fuja se me vir vestido de frade. D.CARLOTA (_indo a elle_) De frade? O senhor vae ser frade? CAVALCANTE Frade. Sua mãe approva-me, comtanto que eu vá á China. Parece-lhe que devo obedecer a esta vocação, ainda depois de perdida? D. CARLOTA É difficil obedecer a uma vocação perdida. CAVALCANTE Talvez nem a tivesse, e ninguem se deu ao trabalho de me dissuadir. Foi aqui, a seu lado, que comecei a mudar. A sua voz sae de um coração que padeceu tambem, e sabe falar a quem padece. Olhe, julgue-me doudo, se quizer, mas eu vou pedir-lhe um favor: conceda-me que a ame (_Carlota, perturbada, volta o rosto_). Não lhe peço que me ame, mas que se deixe amar; é um modo de ser grato. Se fosse uma santa, não podia impedir que lhe accendesse uma vela. D.CARLOTA Não falemos mais nisto, e separemo-nos. CAVALCANTE A sua voz treme; olhe para mim... D. CARLOTA Adeus; ahi vem mamãe. SCENA XIII OS MESMOS, D. LEOCADIA D. LEOCADIA Que é isto, doutor? Então o senhor quer só um anno de China? Vieram pedir-me que reduzisse a sua ausencia. CAVALCANTE D. Carlota lhe dirá o que eu desejo. D. CARLOTA O doutor veiu saber se mamãe conhece algum cardeal em Roma. CAVALCANTE A principio era um cardeal; agora basta um vigario. D. LEOCADIA Um vigario? Para que? CAVALCANTE Não posso dizer. D. LEOCADIA, _a Carlota_ Deixa-nos sós, Carlota; o doutor quer fazer-me uma confidencia. CAVALCANTE Não, não, ao contrario... D. Carlota póde ficar. O que eu quero dizer é que um vigario basta para casar. D. LEOCADIA Casar a quem? CAVALCANTE Não é já, falta-me ainda a noiva. D. LEOCADIA Mas quem é que me está falando? CAVALCANTE Sou eu, D. Leocadia. D. LEOCADIA O senhor! o senhor! o senhor! CAVALCANTE Eu mesmo. Pedi licença a alguem... D. LEOCADIA Para casar? SCENA XIV OS MESMOS, MAGALHÃES, D. LEOCADIA MAGALHÃES Consentiu, titia? D. LEOCADIA Em reduzir a China a um anno? Mas elle agora quer a vida inteira. MAGALHÃES Estás doudo? D. LEOCADIA Sim, a vida inteira, mas é para casar. (_D. Carlota fala baixo a D. Adelaide_) Você entende, Magalhães? CAVALCANTE Eu, que devia entender, não entendo. D. ADELAIDE, _que ouviu D. Carlota_ Entendo eu. O Dr. Cavalcante contou as suas tristezas a Carlota, e Carlota, meia curada do seu proprio mal, expoz sem querer o que tinha sentido. Entenderam-se e casam-se. D. LEOCADIA, _a Carlota_ Devéras? (_D. Carlota baixa os olhos_) Bem; como é para saude dos dous, concedo; são mais duas curas! MAGALHÃES Perdão; estas fizeram-se pela receita de um proverbio grego que está aqui neste livro (_Abre o livro_) «Não consultes medico; consulta alguem que tenha estado doente.» Licção de botanica PESSOAS D. HELENA D. LEONOR D. CECILIA BARÃO SEGISMUNDO DE KERNOBERG Logar da scena: Andarahy. ACTO UNICO Sala em casa de D. Leonor. Portas ao fundo, uma á direita do espectador. SCENA I D. LEONOR, D. HELENA, D. CECILIA D. Leonor entra, lendo uma carta. D. Helena e D. Cecilia entram do fundo. D. HELENA Já de volta! D. CECILIA, _a D. Helena, depois de um silencio_ Será alguma carta de namoro? D. HELENA, _baixo_ Creança! D. LEONOR Não me explicarão isto? D. HELENA Que é? D. LEONOR Recebi ao descer do carro este bilhete. «Minha senhora. Permitta que o mais respeitoso vizinho lhe peça dez minutos de attenção. Vae n'isto um grande interesse da sciencia». Que tenho eu com a sciencia? D. HELENA Mas de quem é a carta? D. LEONOR Do Barão Segismundo de Kernoberg. D. CECILIA Ah! o tio de Henrique! D. LEONOR De Henrique! Que familiaridade é essa? D. CECILIA Titia, eu... D. LEONOR Eu quê?... Henrique! D. HELENA Foi uma maneira de falar na ausencia... Com que então o Sr. Barão Segismundo de Kernoberg pede-lhe dez minutos de attenção, em nome e por amor da sciencia. Da parte de um botanico é por força alguma egloga. D. LEONOR Seja o que fôr, não sei se deva receber um senhor a quem nunca vimos. Já o viram alguma vez? D. CECILIA Eu nunca. D. HELENA Nem eu. D. LEONOR Botanico e sueco: duas razões para ser gravemente aborrecido. Nada, não estou em casa. D. CECILIA Mas quem sabe, titia, se elle quer pedir-lhe... sim... um exame no nosso jardim? D. LEONOR Ha por todo esse Andarahy muito jardim para examinar. D. HELENA Não, senhora, ha de recebel-o. D. LEONOR Porque? D. HELENA Porque é nosso vizinho, porque tem necessidade de falar-lhe, e, emfim, porque, a julgar pelo sobrinho, deve ser um homem distincto. D. LEONOR Não me lembrava do sobrinho. Vá lá; aturemos o botanico. (_Sae pela porta do fundo, á esquerda._) SCENA II D. HELENA, D. CECILIA D. HELENA Não me agradeces? D. CECILIA O que? D. HELENA Sonsa! Pois não adivinhas o que vem cá fazer o barão? D. CECILIA Não. D. HELENA Vem pedir a tua mão para o sobrinho. D. CECILIA Helena! D. HELENA, _imitando-a_ Helena! D. CECILIA Juro... D. HELENA Que o não amas. D. CECILIA Não é isso. D. HELENA Que o amas? D. CECILIA Tambem não. D. HELENA Mau! Alguma cousa ha de ser. _Il faut qu'une porte soit ouverte ou fermée._ Porta neste caso é coração. O teu coração ha de estar fechado ou aberto... D. CECILIA Perdi a chave. D. HELENA, _rindo_ E não o pódes fechar outra vez. São assim todos os corações ao pé de todos os Henriques. O teu Henrique viu a porta aberta, e tomou posse do logar. Não escolheste mal, não; é um bonito rapaz. D. CECILIA Oh! uns olhos! D. HELENA Azues. D. CECILIA Como o ceu. D. HELENA Louro... D. CECILIA Elegante... D. HELENA Espirituoso... D. CECILIA E bom. D. HELENA Uma perola. (_Suspira._) Ah! D. CECILIA Suspiras? D. HELENA Que ha de fazer uma viuva, falando... de uma perola? D. CECILIA Oh! tens naturalmente em vista algum diamante de primeira grandeza. D. HELENA Não tenho, não; meu coração já não quer joias. D. CECILIA Mas as joias querem o teu coração. D. HELENA Tanto peior para ellas: hão de ficar em casa do joalheiro. D. CECILIA Veremos isso. (_Sobe_) Ah! D. HELENA Que é? D. CECILIA, _olhando para a direita_. Um homem desconhecido que lá vem; ha de ser o barão. D. HELENA Vou avisar titia. (_Sae pelo fundo, esquerda._) SCENA III D. CECILIA, BARÃO D. CECILIA Será devéras elle? Estou tremula... Henrique não me avisou de nada... Virá pedir-me?... Mas não, não, não póde ser elle... Tão moço!... (_O barão apparece._) BARÃO, _á porta, depois de profunda cortezia_ Creio que a Excellentissima senhora D. Leonor Gouvea recebeu uma carta... Vim sem esperar a resposta. D. CECILIA É o Sr. Barão Segismundo de Kernoberg? (_O barão faz um gesto affirmativo._) Recebeu. Queira entrar e sentar-se. (_Áparte._) Devo estar vermelha... O BARÃO, _áparte, olhando para Cecilia_ Ha de ser esta. D. CECILIA, _áparte_ E titia não vem... Que demora!... Não sei que lhe diga... estou tão vexada... (_O Barão tira um livro da algibeira e folhea-o._) Se eu pudesse deixal-o... É o que vou fazer. (_Sobe._) BARÃO, _fechando o livro e erguendo-se_ V Ex. ha de desculpar-me. Recebi hoje mesmo este livro da Europa; é obra que vae fazer revolução na sciencia; nada menos que uma monographia das gramineas, premiada pela Academia de Stockolmo. D. CECILIA Sim? (_Áparte._) Aturemol-o, póde vir a ser meu tio. BARÃO As gramineas têm ou não têm periantho? A principio adoptou-se a negativa, posteriormente... V. Ex. talvez não conheça o que é o periantho... D. CECILIA Não, senhor. BARÃO Periantho compõe-se de duas palavras gregas: _peri_, em volta, e _anthos_ flor. D. CECILIA O envolucro da flor. BARÃO Acertou. É o que vulgarmente se chama calix. Pois as gramineas eram tidas... (_Apparece D. Leonor ao fundo._) Ah! SCENA IV OS MESMOS, D. LEONOR D. LEONOR Desejava falar-me? BARÃO Se me dá essa honra. Vim sem esperar resposta á minha carta. Dez minutos apenas. D. LEONOR Estou ás suas ordens. D. CECILIA Com licença. (_Áparte, olhando para o ceu._) Ah! minha Nossa Senhora! (_Retira-se pelo fundo._) SCENA V D. LEONOR, BARÃO (D. Leonor senta-se, fazendo um gesto ao Barão que a imita) BARÃO Sou o Barão Sigismundo de Kernoberg, seu vizinho, botanico de vocação, profissão e tradição, membro da Academia de Stockolmo, e commissionado pelo governo da Suecia para estudar a flora da America do Sul. V. Ex. dispensa a minha biographia? (_D. Leonor faz um gesto affirmativo._) Direi sómente que o tio de meu tio foi botanico, meu tio botanico, eu botanico, e meu sobrinho ha de ser botanico. Todos somos botanicos de tios a sobrinhos. Isto de algum modo explica minha vinda a esta casa. D. LEONOR Oh! o meu jardim é composto de plantas vulgares. BARÃO, _gracioso_ É porque as melhores flores da casa estão dentro de casa. Mas V. Ex. engana-se; não venho pedir nada do seu jardim. D. LEONOR Ah! BARÃO Venho pedir-lhe uma cousa que lhe ha de parecer singular. D. LEONOR Fale. BARÃO O padre desposa a egreja; eu desposei a sciencia. Saber é o meu estado conjugal; os livros são a minha familia. N'uma palavra, fiz voto de celibato. D. LEONOR Não se case. BARÃO Justamente. Mas, V. Ex. comprehende que, sendo para mim ponto de fé que a sciencia não se dá bem com o matrimonio, nem eu devo casar, nem... V. Ex. já percebeu. D. LEONOR Cousa nenhuma. BARÃO Meu sobrinho Henrique anda estudando commigo os elementos da botanica. Tem talento, ha de vir a ser um luminar da sciencia. Se o casamos, está perdido. D. LEONOR Mas... BARÃO, _áparte_ Não entendeu. (_Alto._) Sou obrigado a ser mais franco. Henrique anda apaixonado por uma de suas sobrinhas, creio que esta que saiu d'aqui, ha pouco. Impuz-lhe que não voltasse a esta casa; elle resistiu-me. Só me resta um meio: é que V. Ex. lhe feche a porta. D. LEONOR Senhor barão! BARÃO Admira-se do pedido? Creio que não é polido nem conveniente. Mas é necessario, minha senhora, é indispensavel. A sciencia precisa de mais um obreiro: não o encadeiemos no matrimonio. D. LEONOR Não sei se devo sorrir do pedido... BARÃO Deve sorrir, sorrir e fechar-nos a porta. Terá os meus agradecimentos e as benções da posteridade. D. LEONOR, _sorrindo_ Não é preciso tanto; posso fechal-a de graça. BARÃO Justo. O verdadeiro beneficio é gratuito. D. LEONOR Antes, porém, de nos despedirmos, desejava dizer uma cousa e perguntar outra. (_O barão curva-se_) Direi primeiramente que ignoro se ha tal paixão da parte de seu sobrinho; em segundo logar, perguntarei se na Suecia estes pedidos são usuaes. BARÃO Na geographia intellectual não ha Suecia nem Brazil; os paizes são outros: astronomia, geologia, mathematicas; na botanica são obrigatorios. D. LEONOR Todavia, á força de andar com flores... deviam os botanicos trazel-as comsigo. BARÃO Ficam no gabinete. D. LEONOR Trazem os espinhos sómente. BARÃO V. Ex. tem espirito. Comprehendo a affeição de Henrique a esta casa. (_Levanta-se_) Promette-me então... D. LEONOR, _levantando-se_ Que faria no meu caso? BARÃO Recusava. D. LEONOR Com prejuizo da sciencia? BARÃO Não, porque nesse caso a sciencia mudaria de acampamento, isto é, o vizinho prejudicado escolheria outro bairro para seus estudos. D. LEONOR Não lhe parece que era melhor ter feito isso mesmo, antes de arriscar um pedido inefficaz? BARÃO Quiz primeiro tentar fortuna. SCENA VI D. LEONOR, BARÃO, D. HELENA D. HELENA, _entra e pára_ Ah! D. LEONOR Entra, não é assumpto reservado. O Sr. Barão de Kernoberg...(_Ao Barão_) É minha sobrinha Helena. (_A Helena._) Aqui o Sr. Barão vem pedir que o não perturbemos no estudo da botanica. Diz que seu sobrinho Henrique está destinado a um logar honroso na sciencia, e... Conclua, Sr. Barão. BARÃO Não convem que se case, a sciencia exige o celibato. D. LEONOR Ouviste? D. HELENA Não comprehendo... BARÃO Uma paixão louca de meu sobrinho póde impedir que... Minhas senhoras, não desejo roubar-lhes mais tempo... Confio em V. Ex., minha senhora... Ser-lhe-hei eternamente grato. Minhas senhoras. (_Faz uma grande cortezia e sae._) SCENA VII D. HELENA, D. LEONOR D. LEONOR, _rindo_ Que urso! D. HELENA Realmente... D. LEONOR Perdôo-lhe em nome da sciencia. Fique com as suas hervas, e não nos aborreça mais, nem elle nem o sobrinho. D. HELENA Nem o sobrinho? D. LEONOR Nem o sobrinho, nem o creado, nem o cão, se o houver, nem cousa nenhuma que tenha relação com a sciencia. Enfada-te? Pelo que vejo, entre o Henrique e a Cecilia ha tal ou qual namoro? D. HELENA Se promette segredo... ha. D. LEONOR Pois acabe-se o namoro. D. HELENA Não é facil. O Henrique é um perfeito cavalheiro; ambos são dignos um do outro. Por que razão impediremos que dous corações... D. LEONOR Não sei de corações, não hão de faltar casamentos a Cecilia. D. HELENA Certamente que não, mas os casamentos não se improvisam nem se projectam na cabeça; são actos do coração, que a egreja santifica. Tentemos uma cousa. D. LEONOR Que é? D. HELENA Reconciliemo-nos com o Barão. D. LEONOR Nada, nada. D. HELENA Pobre Cecilia! D. LEONOR É ter paciencia, sujeite-se ás circumstancias... (_A D. Cecilia, que entra_) Ouviste? D. CECILIA O quê, titia? D. LEONOR Helena te explicará tudo. (_A D. Helena baixo_) Tira-lhe todas as esperanças. (_Indo-se_) Que urso! que urso! SCENA VIII D. HELENA, D. CECILIA D. CECILIA Que aconteceu? D. HELENA Aconteceu... (_Olha com tristeza para ella._) D. CECILIA Acaba. D. HELENA Pobre Cecilia! D. CECILIA Titia recusou a minha mão? D. HELENA Qual! O Barão é que se oppõe ao casamento. D. CECILIA Oppõe-se! D. HELENA Diz que a sciencia exige o celibato do sobrinho. (_D. Cecilia encosta-se a uma cadeira_) Mas, socega; nem tudo está perdido; póde ser que o tempo... D. CECILIA Mas quem impede que elle estude? D. HELENA Mania de sabio. Ou então, evasiva do sobrinho. D. CECILIA Oh! não! é impossivel; Henrique é uma alma angelica! Respondo por elle. Ha de certamente oppôr-se a semelhante exigencia... D. HELENA Não convem precipitar as cousas. O Barão póde zangar-se e ir-se embora. D. CECILIA Que devo então fazer? D. HELENA Esperar. Ha tempo para tudo. D. CECILIA Pois bem, quando Henrique vier... D. HELENA Não vem, titia resolveu fechar a porta a ambos. D. CECILIA Impossivel! D. HELENA Pura verdade. Foi uma exigencia do Barão. D. CECILIA Ah! conspiram todos contra mim. (_Põe as mãos na cabeça_) Sou muito infeliz! Que mal fiz eu a essa gente? Helena, salva-me! Ou eu mato-me! Anda, vê se descobres um meio... D. HELENA, _indo sentar-se_. Que meio? D. CECILIA, _acompanhando-a_. Um meio qualquer que não nos separe! D. HELENA, _sentada_. Ha um. D. CECILIA Qual? Dize. D. HELENA Casar. D. CECILIA Oh! não zombes de mim! Tu tambem amaste, Helena; deves respeitar estas angustias. Não tornar a ver o meu Henrique é uma idéa intoleravel. Anda, minha irmãsinha. (_Ajoelha-se inclinando o corpo sobre o regaço de D. Helena._) Salva-me! És tão intelligente, que has de achar por força alguma idéa; anda, pensa! D. HELENA, _beijando-lhe a testa_. Creança! suppões que seja cousa tão facil assim? D. CECILIA Para ti ha de ser facil. D. HELENA Lisonjeira! (_Pega machinalmente no livro deixado pelo Barão sobre a cadeira._) A boa vontade não póde tudo; é preciso... (_Tem aberto o livro._) Que livro é este?... Ah! talvez do Barão. D. CECILIA Mas vamos... continua. D. HELENA Isto ha de ser sueco... trata talvez de botanica. Sabes sueco? D. CECILIA Helena! D. HELENA Quem sabe se este livro póde salvar tudo? (_Depois de um instante de reflexão_) Sim, é possivel. Tratará de botanica? D. CECILIA Trata. D. HELENA Quem te disse? D. CECILIA Ouvi dizer ao Barão, trata das... D. HELENA Das... D. CECILIA Das gramineas. D. HELENA Só das gramineas? D. CECILIA Não sei; foi premiado pela Academia de Stockolmo. D. HELENA De Stockolmo. Bem. (_Levanta-se_). D. CECILIA, _levantando-se_ Mas que é? D. HELENA Vou mandar-lhe o livro... D. CECILIA Que mais? D. HELENA Com um bilhete. D. CECILIA, _olhando para a direita_ Não é preciso; lá vem elle. D. HELENA Ah! D. CECILIA Que vaes fazer? D. HELENA Dar-lhe o livro. D. CECILIA O livro, e... D. HELENA E as despedidas. D. CECILIA Não comprehendo. D. HELENA Espera e verás. D. CECILIA Não posso encaral-o; adeus. D. HELENA Cecilia! (_D. Cecilia sae._) SCENA IX D. HELENA, BARÃO BARÃO, _á porta_. Perdão, minha senhora; eu trazia um livro ha pouco... D. HELENA, _com o livro na mão_. Será este? BARÃO, _caminhando para ella_. Justamente. D. HELENA Escripto em sueco, penso eu... BARÃO Em sueco. D. HELENA Trata naturalmente de botanica. BARÃO Das gramineas. D. HELENA, _com interesse_. Das gramineas! BARÃO De que se espanta? D. HELENA Um livro publicado... BARÃO Ha quatro mezes. D. HELENA Premiado pela Academia de Stockolmo? BARÃO, _admirado_. É verdade. Mas... D. HELENA Que pena que eu não saiba sueco! BARÃO Tinha noticia do livro? D. HELENA Certamente. Ando anciosa por lel-o. BARÃO Perdão, minha senhora. Sabe botanica? D. HELENA Não ouso dizer que sim, estudo alguma cousa; leio quando posso. É sciencia profunda e encantadora. BARÃO, _com calor_. É a primeira de todas. D. HELENA Não me atrevo a apoial-o, porque nada sei das outras, e poucas luzes tenho de botanica, apenas as que póde dar um estudo solitario e deficiente. Se a vontade supprisse o talento... BARÃO Porque não? _Le génie, c'est la patience_, dizia Buffon. D. HELENA, _sentando-se_. Nem sempre. BARÃO Realmente, estava longe de suppôr que, tão perto de mim, uma pessoa tão distincta dava algumas horas vagas ao estudo da minha bella sciencia. D. HELENA Da sua esposa. BARÃO, _sentando-se_. É verdade. Um marido póde perder a mulher, e se a amar devéras, nada a compensará neste mundo, ao passo que a sciencia não morre... Morremos nós, ella sobrevive com todas as graças do primeiro dia, ou ainda maiores, porque cada descoberta é um encanto novo. D. HELENA Oh! tem razão! BARÃO Mas, diga-me V. Ex.: tem feito estudo especial das gramineas. D. HELENA Por alto... por alto... BARÃO Comtudo, sabe que a opinião dos sabios não admittia o periantho... (_D. Helena faz signal affirmativo._) Posteriormente reconheceu-se a existencia do periantho. (_Novo gesto de D. Helena._) Pois este livro refuta a segunda opinião. D. HELENA Refuta o periantho? BARÃO Completamente. D. HELENA Acho temeridade. BARÃO Tambem eu suppunha isso... Li-o, porém, e a demonstração é clarissima. Tenho pena que não possa lel-o. Se me dá licença, farei uma traducção portugueza e daqui a duas semanas... D. HELENA Não sei se deva acceitar... BARÃO Acceite; é o primeiro passo para me não recusar segundo pedido. D. HELENA Qual? BARÃO Que me deixe acompanhal-a em seus estudos, repartir o pão do saber com V. Ex. É a primeira vez que a fortuna me depara uma discipula. Discipula é, talvez, ousadia da minha parte... D. HELENA Ousadia, não; eu sei muito pouco; posso dizer que não sei nada. BARÃO A modestia é o aroma do talento, como o talento é o esplendor da graça. V. Ex. possue tudo isso. Posso comparal-a á violeta,--_viola odorata_ de Linneo,--que é formosa e recatada... D. HELENA, _interrompendo_ Pedirei licença á minha tia. Quando será a primeira licção? BARÃO Quando quizer. Póde ser amanhã. Tem certamente noticia da anatomia vegetal... D. HELENA Noticia incompleta. BARÃO Da physiologia? D. HELENA Um pouco menos. BARÃO Nesse caso, nem a taxonomia, nem a phytographia... D. HELENA Não fui até lá. BARÃO Mas ha de ir... Verá que mundos novos se lhe abrem deante do espirito. Estudaremos, uma por uma, todas as familias, as orchideas, as jasmineas, as rubiaceas, as oleaceas, as narciseas, as umbelliferas, as... D. HELENA Tudo, desde que se trata de flores. BARÃO Comprehendo: amor de familia. D. HELENA Bravo! um comprimento! BARÃO, _folheando o livro_. A sciencia os permitte. D. HELENA, _áparte_. O mestre é perigoso. (_Alto._) Tinham-me dito exactamente o contrario; disseram-me que o Sr Barão era... não sei como diga... era... BARÃO Talvez um urso. D. HELENA Pouco mais ou menos. BARÃO E sou. D. HELENA Não creio. BARÃO Porque não crê? D. HELENA Porque o vejo amavel. BARÃO Supportavel apenas. D. HELENA Demais, imaginava-o uma figura muito differente, um velho macillento, melenas caídas, olhos encovados. BARÃO Estou velho, minha senhora. D. HELENA Trinta e seis annos. BARÃO Trinta e nove. D. HELENA Plena mocidade. BARÃO Velho para o mundo. Que posso eu dar ao mundo senão a minha prosa scientifica? D. HELENA Só uma cousa lhe acho inacceitavel. BARÃO Que é? D. HELENA A theoria de que o amor e a sciencia são incompativeis. BARÃO Oh! isso... D. HELENA Dá-se o espirito á sciencia e o coração ao amor. São territorios differentes, ainda que limitrophes. BARÃO Um acaba por annexar o outro. D. HELENA Não creio. BARÃO O casamento é uma bella cousa, mas o que faz bem a uns, póde fazer mal a outros. Sabe que Mafoma não permitte o uso do vinho aos seus sectarios. Que fazem os turcos? Extraem o succo de uma planta, da familia das papaveraceas, bebem-no, e ficam alegres. Esse licor, se nós o bebessemos, matar-nos-hia. O casamento, para nós, é o vinho turco. D. HELENA, _erguendo os hombros_. Comparação não é argumento. Demais, houve e ha sabios casados. BARÃO Que seriam mais sabios se não fossem casados. D. HELENA Não fale assim. A esposa fortifica a alma do sabio. Deve ser um quadro delicioso para o homem que despende as suas horas na investigação da natureza, fazel-o ao lado da mulher que o ampara e anima, testemunha de seus esforços, socia de suas alegrias, attenta, dedicada, amorosa. Será vaidade de sexo? Póde ser, mas eu creio que o melhor premio do merito é o sorriso da mulher amada. O applauso publico é mais ruidoso, mas muito menos tocante que a approvação domestica. BARÃO, _depois de um instante de hesitação e luta_. Falemos da nossa licção. D. HELENA Amanhã, se minha tia consentir. (_Levanta-se_) Até amanhã, não? BARÃO Hoje mesmo, se o ordenar. D. HELENA Acredita que não perderei o tempo? BARÃO Estou certo que não. D. HELENA Serei academica de Stockolmo? BARÃO Conto que terei essa honra. D. HELENA, _cortejando_. Até amanhã. BARÃO, _o mesmo_. Minha senhora! (_D. Helena sae pelo fundo, esquerda, o barão caminha para a direita, mas volta para buscar o livro que ficára sobre a cadeira ou sophá_). SCENA X BARÃO, D. LEONOR BARÃO, _pensativo_. Até amanhã! Devo eu cá voltar? Talvez não devesse, mas é interesse da sciencia... a minha palavra empenhada... O peior de tudo é que a discipula é graciosa e bonita. Nunca tive discipula, ignoro até que ponto é perigoso... Ignoro? Talvez não... (_Põe a mão no peito_) Que é isto?... (_Resoluto_). Não, sicambro! Não has de adorar o que queimaste! Eia, volvamos ás flores e deixemos esta casa para sempre. (_Entra D. Leonor_) D. LEONOR, _vendo o barão_. Ah! BARÃO Voltei ha dous minutos; vim buscar este livro. (_Comprimentando_) Minha senhora! D. LEONOR Senhor Barão! BARÃO, _vae até á porta, e volta_. Creio que V. Ex. não me fica querendo mal? D. LEONOR Certamente que não. BARÃO, _comprimentando_. Minha senhora! LEONOR, _idem_. Senhor Barão! BARÃO, _vae até á porta e volta_. A senhora D. Helena não lhe falou agora? D. LEONOR Sobre quê? BARÃO Sobre umas licções de botanica... D. LEONOR Não me falou em nada... BARÃO, _comprimentando_. Minha senhora! D. LEONOR, _idem_. Senhor Barão! (_Barão sae._) Que exquisitão. Valia a pena cultival-o de perto. BARÃO, _reapparecendo_. Perdão... D. LEONOR Ah!--Que manda? BARÃO, _approxima-se_. Completo a minha pergunta. A sobrinha de V. Ex. falou-me em receber algumas licções de botanica. V. Ex. consente? (_Pausa._) Ha de parecer-lhe exquisito este pedido, depois do que tive a honra de fazer-lhe ha pouco... D. LEONOR Sr. Barão, no meio de tantas copias e imitações humanas... BARÃO Eu acabo: sou original. D. LEONOR Não ouso dizel-o. BARÃO Sou; noto, entretanto, que a observação de V. Ex. não responde á minha pergunta. D. LEONOR Bem sei; por isso mesmo é que a fiz. BARÃO Nesse caso... D. LEONOR Nesse caso, deixe-me reflectir. BARÃO Cinco minutos? D. LEONOR Vinte e quatro horas. BARÃO Nada menos? D. LEONOR Nada menos. BARÃO, _comprimentando_. Minha senhora! D. LEONOR, _idem_. Senhor Barão! (_Sae o barão._) SCENA XI D. LEONOR, D. CECILIA D. LEONOR Singular é elle, mas não menos singular é a idéa de Helena. Para que quererá ella aprender botanica? D. CECILIA, _entrando_. Helena! (_D. Leonor volta-se._) Ah! é titia. D. LEONOR Sou eu. D. CECILIA Onde está Helena? D. LEONOR Não sei, talvez lá em cima (_D. Cecilia dirige-se para o fundo._) Onde vaes?... D. CECILIA Vou... D. LEONOR Acaba. D. CECILIA Vou concertar o penteado. D. LEONOR Vem cá; concerto eu. (_D. Cecilia approxima-se de D. Leonor_) Não é preciso, está excellente. Dize-me: estás muito triste! D. CECILIA, _muito triste_ Não, senhora; estou alegre. D. LEONOR Mas, Helena disse-me que tu... D. CECILIA Foi gracejo. D. LEONOR Não creio; tens alguma cousa que te afflige; has de contar-me tudo. D. CECILIA Não posso. D. LEONOR Não tens confiança em mim? D. CECILIA Oh! toda! D. LEONOR Pois eu exijo... (_Vendo Helena, que apparece á porta do fundo, esquerda_) Ah! chegas a proposito. SCENA XII D. LEONOR, D. CECILIA, D. HELENA D. HELENA Para que? D. LEONOR Explica-me que historia é essa que me contou o Barão? D. CECILIA, _com curiosidade_. O Barão? D. LEONOR Parece que estás disposta a estudar botanica. D. HELENA Estou. D. CECILIA, _sorrindo_ Com o Barão? D. HELENA Com o Barão. D. LEONOR Sem o meu consentimento? D. HELENA Com o seu consentimento. D. LEONOR Mas de que te serve saber botanica? D. HELENA Serve para conhecer as flores dos meus _bouquets_, para não confundir jasmineas com rubiaceas, nem bromelias com umbelliferas. D. LEONOR Com que? D. HELENA Umbelliferas. D. LEONOR Umbe... D. HELENA ...liferas. Umbelliferas. D. LEONOR Virgem santa! E que ganhas tu com esses nomes barbaros? D. HELENA Muita cousa. D. CECILIA, _áparte_ Boa Helena! Comprehendo tudo. D. HELENA O periantho, por exemplo: a senhora talvez ignore a questão do periantho... a questão das gramineas... D. LEONOR E dou graças a Deus! D. CECILIA, _animada_ Oh! deve ser uma questão importantissima! D. LEONOR, _espantada_. Tambem tu! D. CECILIA Só o nome! Periantho! É nome grego, titia; um delicioso nome grego. (_Áparte._) Estou morta por saber do que se trata. D. LEONOR Vocês fazem-me perder o juizo! Aqui andam bruxas, de certo. Periantho de um lado, bromelias de outro; uma lingua de gentios, avessa á gente christã. Que quer dizer tudo isso? D. CECILIA Quer dizer que a sciencia é uma grande cousa, e que não ha remedio senão adorar a botanica. D. LEONOR Que mais? D. CECILIA Que mais? Quer dizer que a noite de hoje ha de estar deliciosa, e podemos ir ao theatro lyrico. Vamos, sim? Amanhã é o baile do conselheiro, e sabbado o casamento da Julia Marcondes. Tres dias de festas! Prometto divertir-me muito, muito, muito. Estou tão contente! Ria-se, titia; ria-se e dê-me um beijo! D. LEONOR Não dou, não, senhora. Minha opinião é contra a botanica, e isto mesmo vou escrever ao Barão. D. HELENA Reflicta primeiro; basta amanhã! D. LEONOR Ha de ser hoje mesmo! Esta casa está ficando muito sueca; voltemos a ser brasileiras. Vou escrever ao urso. Acompanha-me, Cecilia; has de contar-me o que ha. (_Saem._) SCENA XIII D. HELENA, BARÃO D. HELENA Cecilia deitou tudo a perder... Não se póde fazer nada com creanças... Tanto peior para ella. (_Pausa_) Quem sabe se tanto melhor para mim? Póde ser. Aquelle professor não é assaz velho, como convinha. Além disso, ha nelle um ar de diamante bruto, uma alma apenas coberta pela crosta scientifica, mas cheia de fogo e luz. Se eu viesse a arder ou cegar... (_Levanta os hombros_) Que idéa! Não passa de um urso, como titia lhe chama, um urso com patas de rosas. BARÃO, _approximando-se_. Perdão, minha senhora. Ao atravessar a chacara, ia pensando no nosso accordo, e, sinto dizel-o, mudei de resolução. D. HELENA Mudou? BARÃO, _approximando-se_ Mudei. D. HELENA Póde saber-se o motivo? BARÃO São tres. O primeiro é o meu pouco saber... Ri-se? D. HELENA De incredulidade. O segundo motivo... BARÃO O segundo motivo é o meu genio aspero e despotico. D. HELENA Vejamos o terceiro. BARÃO O terceiro é a sua edade. Vinte e um annos, não? D. HELENA Vinte e dous. BARÃO Solteira? D. HELENA Viuva. BARÃO Perpetuamente viuva? D. HELENA Talvez. BARÃO Nesse caso, quarto motivo: a sua viuvez perpetua. D. HELENA Conclusão: todo o nosso accordo está desfeito. BARÃO Não digo que esteja; só por mim não o posso romper. V. Ex. porém avaliará as razões que lhe dou, e decidirá se elle deve ser mantido. D. HELENA Supponha que respondo affirmativamente. BARÃO Paciencia! obedecerei. D. HELENA De má vontade? BARÃO Não; mas com grande desconsolação. D. HELENA Pois, Sr. Barão, não desejo violental-o; está livre. BARÃO Livre, e não menos desconsolado. D. HELENA Tanto melhor! BARÃO Como assim? D. HELENA Nada mais simples: vejo que é caprichoso e incoherente. BARÃO Incoherente, é verdade. D. HELENA Irei procurar outro mestre. BARÃO Outro mestre! Não faça isso. D. HELENA Porque? BARÃO Porque... (_Pausa_) V. Ex. é intelligente bastante para dispensar mestres. D. HELENA Quem lh'o disse? BARÃO Adivinha-se. D. HELENA Bem; irei queimar os olhos nos livros. BARÃO Oh! seria estragar as mais bellas flores do mundo! D. HELENA, _sorrindo_ Mas então nem mestres nem livros? BARÃO Livros, mas applicação moderada. A sciencia não se colhe de afogadilho; é preciso penetral-a com segurança e cautella. D. HELENA Obrigada. (_Estendendo-lhe a mão_) E visto que me recusa as suas licções, adeus. BARÃO Já! D. HELENA Pensei que queria retirar-se. BARÃO Queria e custa-me. Em todo o caso, não desejava sair sem que V. Ex. me dissesse francamente o que pensa de mim. Bem ou mal? D. HELENA Bem e mal. BARÃO Pensa então... D. HELENA Penso que é intelligente e bom, mas caprichoso e egoista. BARÃO Egoista! D. HELENA Em toda a força da expressão. (_Senta-se_) Por egoismo,--scientifico, é verdade,--oppõe-se ás affeições de seu sobrinho; por egoismo, recusa-me as suas licções. Creio que o Sr. Barão nasceu para mirar-se no vasto espelho da natureza, a sós comsigo, longe do mundo e seus enfados. Aposto que, desculpe a indiscreção da pergunta,--aposto que nunca amou? BARÃO Nunca. D. HELENA De maneira que nunca uma flor teve a seus olhos outra applicação, além do estudo? BARÃO Engana-se. D. HELENA Sim? BARÃO Depositei algumas coroas de goivos no tumulo de minha mãe. D. HELENA Ah! BARÃO Ha em mim alguma cousa mais do que eu mesmo. Ha a poesia das affeições por baixo da prova scientifica. Não a ostento, é verdade; mas sabe V. Ex. o que tem sido a minha vida? Um claustro. Cedo perdi o que havia mais caro: a familia. Desposei a sciencia, que me tem servido de alegrias, consolações e esperanças. Deixemos, porém, tão tristes memorias... D. HELENA Memorias de homem; até aqui eu só via o sabio. BARÃO Mas o sabio reapparece e enterra o homem. Volto á vida vegetativa... se me é licito arriscar um trocadilho em portuguez, que eu não sei bem se o é. Póde ser que não passe de apparencia. Todo eu sou apparencias, minha senhora, apparencias de homem, de linguagem e até de sciencia... D. HELENA Quer que o elogie? BARÃO Não; desejo que me perdôe. D. HELENA Perdoar-lhe o que? BARÃO A incoherencia de que me accusava ha pouco. D. HELENA Tanto perdôo que o imito. Mudo egualmente de resolução, e dou de mão ao estudo. BARÃO Não faça isso! D. HELENA Não lerei uma só linha de botanica, que é a mais aborrecivel sciencia do mundo. BARÃO Mas o seu talento... D. HELENA Não tenho talento; tinha curiosidade. BARÃO É a chave do saber. D. HELENA Que monta isso? A porta fica tão longe! BARÃO É certo, mas o caminho é de flores. D. HELENA Com espinhos. BARÃO Eu lhe quebrarei os espinhos. D. HELENA De que modo? BARÃO Serei seu mestre. D. HELENA, _levanta-se_ Não! Respeito os seus escrupulos. Subsistem, penso eu, os motivos que allegou. Deixe-me ficar na minha ignorancia. BARÃO É a ultima palavra de V. Ex. D. HELENA Ultima. BARÃO, _com ar de despedida_ Nesse caso... aguardo as suas ordens. D. HELENA Que se não esqueça de nós. BARÃO Crê possivel que me esquecesse? D. HELENA Naturalmente: um conhecimento de vinte minutos. BARÃO O tempo importa pouco ao caso. Não me esquecerei nunca mais destes vinte minutos, os melhores da minha vida, os primeiros que hei realmente vivido. A sciencia não é tudo, minha senhora. Ha alguma cousa mais, além do espirito, alguma cousa essencial ao homem, e... D. HELENA Repare, Sr. Barão, que está falando á sua ex-discipula. BARÃO A minha ex-discipula tem coração, e sabe que o mundo intellectual é estreito para conter o homem todo; sabe que a vida moral é uma necessidade do ser pensante. D. HELENA Não passemos da botanica á philosophia, nem tanto á terra, nem tanto ao ceu. O que o sr. Barão quer dizer, em boa e mediana prosa, é que estes vinte minutos de palestra não o enfadaram de todo. Eu digo a mesma cousa. Pena é que fossem só vinte minutos, e que o Sr. Barão volte ás suas amadas plantas; mas é força ir ter com ellas, não quero tolher-lhe os passos. Adeus! (_Inclinando-se como a despedir-se_) BARÃO _comprimentando_ Minha senhora! (_Caminha até á porta e pára._) Não transporei mais esta porta? D. HELENA Já a fechou por suas proprias mãos. BARÃO A chave está nas suas. D. HELENA, _olhando para as mãos_ Nas minhas? BARÃO _approximando-se_ De certo. D. HELENA Não a vejo. BARÃO É a esperança. Dê-me a esperança de que... D. HELENA _depois de uma pausa_ A esperança de que... BARÃO A esperança de que... a esperança de... D. HELENA, _que tem tirado uma flor de um vaso_ Creio que lhe será mais facil definir esta flor. BARÃO Talvez. D. HELENA Mas não é preciso dizer mais: adivinhei-o. BARÃO, _alvoraçado_ Adivinhou? D. HELENA Adivinhei que quer a todo o trance ser meu mestre. BARÃO, _friamente_ É isso. D. HELENA Acceito. BARÃO Obrigado. D. HELENA Parece-me que ficou triste?... BARÃO Fiquei, pois que só adivinhou metade do meu pensamento. Não adivinhou que eu... porque o não direi? dil-o-hei francamente... Não adivinhou que... D. HELENA Que... BARÃO, _depois de alguns esforços para falar_. Nada... nada... D. LEONOR, _dentro_ Não admitto! SCENA XIV D. HELENA, BARÃO, D. LEONOR, D. CECILIA D. CECILIA, _entrando pelo fundo com D. Leonor_ Mas, titia... D. LEONOR Não admitto, já disse! Não te faltam casamentos. (_Vendo o Barão._) Ainda aqui! BARÃO Ainda e sempre, minha senhora. D. LEONOR Nova originalidade. BARÃO Oh! não! A cousa mais vulgar do mundo. Reflecti, minha senhora, e venho pedir para meu sobrinho a mão de sua encantadora sobrinha. (_Gesto de Cecilia_) D. LEONOR A mão de Cecilia! D. CECILIA Que ouço! BARÃO O que eu lhe pedia ha pouco era uma extravagancia, um acto de egoismo e violencia, além de descortezia que era, e que V. Ex. me perdôou, attendendo á singularidade das minhas maneiras. Vejo tudo isso agora... D. LEONOR Não me opponho ao casamento, se fôr do agrado de Cecilia. D. CECILIA, _baixo a D. Helena_. Obrigada! Foste tu... D. LEONOR Vejo que o Sr. Barão reflectiu. BARÃO Não foi só reflexão, foi tambem resolução. D. LEONOR Resolução? BARÃO, _gravemente_ Minha senhora, atrevo-me a fazer outro pedido. D. LEONOR Ensinar botanica a Helena? Já me deu vinte e quatro horas para responder. BARÃO Peço-lhe mais do que isso; V. Ex. que é, por assim dizer, irmã mais velha de sua sobrinha, póde intervir junto della para... (_Pausa_) D. LEONOR Para... D. HELENA Acabo eu. O que o Sr. Barão deseja é a minha mão. BARÃO Justamente! D. LEONOR, _espantada_ Mas... Não comprehendo nada. BARÃO Não é preciso comprehender; basta pedir. D. HELENA Não basta pedir; é preciso alcançar. BARÃO Não alcançarei? D. HELENA Dê-me tres mezes de reflexão. BARÃO Tres mezes é a eternidade. D. HELENA Uma eternidade de noventa dias. BARÃO Depois della, a felicidade ou o desespero? D. HELENA, _estendendo-lhe a mão_ Está nas suas mãos a escolha. (_A D. Leonor_) Não se admire tanto, titia; tudo isto é botanica applicada. Notas Os erros óbvios do editora foram corrigidos. O Indice foi realocado ao inicio para facilitar a navegaçäõ. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 67935 ***